segunda-feira, 16 de abril de 2012

o ROBÔ FELIZ


        Atenção POLÍCIA ESTA CONTA E MEU COMPUTADOR ESTÃO SENDO UTILIZADOS POR BANDIDOS À MINHA REVELIA MEXEM NOS CONTROLES, ALTERAM ARQUIVOS

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DENUNCIE O FASCISMO BRASILEIRO QUE ESTÁ ATUANDO NAS INSTITUIÇÕES DE ESTADO COMO RIO DE JANEIRO


   O Pós - Modernismo entre os conceitos de discurso, memória e texto  


                                                                          Eliane Colchete

        = Este blog foi produzido anteriormente com o título O Robô Feliz, como um protesto por abusos registrados na decorrência da utilização do espaço "blog.Spot" - dispositivos de impossibilitação do uso.
              Agora está sendo utilizado com o tema do título "O Pós-modernismo entre os conceitos de discurso, memória e texto", porque um novo blog não está podendo ser produzido, pelo mesmo motivo : a produção depende do campo obrigatório "endereço", mas todas as tentativas de preenchimento do campo são imediatamente acompanhadas da informação "não está disponível". Nenhuma opção é oferecida.
                       
              DENUNCIE O NEOFASCISMO BRASILEIRO DA "GLOBALIZAÇÃO", CORRENTE NA MÍDIA INFORMÁTICA E NAS INSTITUIÇÕES DE ESTADO
               EXIJA LEIS QUE POSSAM SER ACIONADAS CONTRA PROCEDIMENTOS DE APARTHEID SOCIAL DISSEMINADOS NA MÍDIA INFORMÁTICA. CONTRIBUA PARA A DERRUBADA DOS CORRUPTOS QUE DISTORCEM A LEI PARA ABUSAR DA POPULAÇÃO COM VEREDITOS ABSURDOS



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     O Pós - Modernismo entre os conceitos de discurso, memória e texto 

                                              Eliane Colchete                        
    

     = Pós-moderno: A história do conceito  
      
          A trajetória  das rubricas "pós-moderno" e pós-modernismo pode hoje apresentar um novo momento. 
          Entre os anos oitenta e noventa, foi um tema polêmico, com forte presença negativa na teoria. Intelectuais de peso como Eagleton, Subirats, Jameson, Habbermas, Deleuze, entre outros, apressaram-se na tentativa, ou de invalidar a pretensão de afirmar um momento histórico, ou um horizonte estético ulterior à "modernidade",  ou ainda de condenar esse momento como algo pior do que a modernidade, reversivo das promessas de progresso social e compromisso histórico nela presentes . 
         Nesse segundo viés, contudo, alguns como Jameson afirmavam realmente uma novidade, ainda que com essa consequência condenatória. Outros, pelo contrário, pensavam que estava havendo apenas um abandono do compromisso histórico dos projetos modernistas e de suas conquistas formais. O momento atual seria apenas um retrocesso a práticas textuais que o modernismo tornara obsoletas. Entre os que pensavam como estes, podemos inserir uma tendência marcada no cenário teórico brasileiro da época, como em Sonia Khede. 
          Ela examinou, para reprovar de forma contundente, dois investimentos literários que estavam se tornando característicos em termos de novas tendências, o que ficou designado "memorialismo" - biografias de experiências atuais, como "Com licença, eu vou à luta", de Eliane Maciel e "O que é isso, companheiro, de Gabeira" - e a prosa visando personagens reais, como o Pixote, não típicos da "literariedade" modernista.  
           Considerou conjuntamente essas publicações como exemplos de simples recuo ao Realismo, com sua ausência de investimento linguístico ou formal, o que significa para os modernistas, mera retratação demagógica de uma realidade fantasiada, porque o investimento formal é ao mesmo tempo a depuração dos estereótipos embutidos nas fantasias ingênuas e de poder, propagandeadas pelo discurso de circulação comum. O Pixote, por exemplo, era mostrado no início do texto, rindo, contrastado aos sisudos burgueses que passavam pela rua, como se fosse, digamos, o bom selvagem de Rousseau.
        Inversamente, Khede valorizou como preservando a linha de inovação modernista, Clarice Lispector e Rubem Fonseca.
        Paralelamente, a rubrica "Pòs-modernismo" conhecia melhor sorte. Linda Hutcheon, na Poética do Pós-modernismo, não só consagra o novo estilo, afirmando-o conceitualmente em suas características de ruptura em relação a todo cenário anterior, tanto realista quanto modernista. Seu volume funciona também como um catálogo de referências teóricas afins à conceituação positiva de um Pós-modernismo estilístico ligado a concepções atuais em teoria.
          Conforme Hutcheon e as tendências que cita em apoio, o modernismo havia sido uma revolução formalista, mas não um questionamento da centralidade da cultura ocidental. Mas como um cenário de publicação de escritores que se consideram à margem dessa cultura majoritária ou que tematizam personagens nessa situação de "ex-cêntrico" ("off-center"), podemos afirmar o pós-modernismo. Ela não identifica a princípio o pós-modernismo em geral e o movimento off-center em particular, mas estende duas características que permitem notar como essa oposição entre centro e margem é o referencial de sua inserção da temática pós-moderna. 
          Primeiro, a situação de margem - das mulheres (em relação aos homens), dos não-ocidentais (em relação aos ocidentais), de questionadores das categorias metafísicas ou objetivistas (em relação à contextos de sedimentação dessas categorias) -  é o referencial dos novos escritores. Eles tendem assim a não começar por uma inovação formal, mas pela informação de si mesmos na situação constituída de sua marginalização real, sua exclusão social, por assim expressar.
          Aqui devemos lembrar expressamente que "marginalização" é um conceito sociológico diferente de "banditismo" ou transgressão social. O marginalizado é apenas alguém que não tem as características de valorização social, numa sociedade hierarquizada a partir da atribuição dessas características. Não é necessariamente alguém que comete atos ilegais.
             A sociologia do século XX, inclusive, surpreendeu a muitos mostrando que pelos dados da observação empírica, não há qualquer relação direta que se possa fazer entre uma situação de marginalização, como ser favelado ou não ser "branco" numa sociedade onde existe preconceito racial, e a taxa de criminalidade. Talvez as constantes sobre criminalidade e motivos pessoais possam ser estipuladas somente entre transgressão à lei e fatores psíquicos: retardamento mental ou instabilidade emocional (cf. T.B. Bottomore, "introdução à sociologia"). Essas são características que não podem ser associadas a rótulos de etnia, classe ou gênero sexual.
           A segunda característica destacada em Hutcheon é que, sendo assim, a partir da informação da situação de margem é que o texto vai inovar formalmente, ao concretizar os deslocamentos em relação às soluções já conhecidas da cultura majoritária, que sua linguagem autêntica por si só implica enquanto não majoritária. O importante quanto a isso é notar que ao contrário do que podia ser considerado o investimento na alteridade cultural até aqui, não se pretende substituir uma hegemonia por outra. Não se considera pertencer a uma outra identidade coletiva, algum estereótipo do outro, mas se investe a complexidade dos deslocamentos situados de algo ou de alguém, em relação ao status majoritário.
             A inovação pode ser temática: a interpretação de um acontecimento histórico se faz de forma inesperada porque o intérprete não é cúmplice dos esquemas que consagraram uma visão standard. Esse é um dos motivos de vários investimentos literários que procedem releitura de acontecimentos ou cenários históricos. Cassandra, de Christa Wolf, produz uma leitura feminista do mito homérico. Ragtime, de Doctorow, reconstitui ironicamente o cenário da revolução industrial norte-americana de princípios do século XX
            Ou incidir sobre categorias que informam a própria constituição do que entendemos por inteligibilidade discursiva, como as que regem, em termos de sujeito e objeto, o "eu" do narrador e as situações narradas. Pinchon e Berger são citados como escritores que tentam desconstruir a oposição e mostrar que o "eu" é variável e constituído nas situações, posto que envolvem qualquer participação efetiva, mas já estão informadas por esquemas e qualificações que devem ser partilhadas - e no entanto vividas como se fossem de si mesmo -  pelo "eu".
           A Poética do pós-modernismo continua um texto denso, povoado de inúmeras citações e insights que ainda estão por ser analisados. Está traduzido entre nós, mas muito de suas referências eu desconheço tradução brasileira, nunca encontrei nas livrarias - como os próprios Berger e Pinchon.
          Seja como for, desde o início do terceiro milênio os manuais escolares tem vindo acrescidos de um capítulo sobre "Pós-modernismo". Mostra-se assim que já não se está num momento polêmico quanto ao tema, que em vez de negatividade, é a oficialidade da rubrica que tem lugar.
            Cotejando essas publicações didáticas, constatei que na verdade elas não são homogêneas quanto ao que classificam nos termos de Pós-modernismo. Sobretudo divergem sobre haver ou não uma terceira geração modernista - como o concretismo, ou a prosa de Lispector. Alguns, supondo que não, vão classificá-los como Pós-modernistas, o que outros, supondo que sim, pensam ser apenas um desdobramento modernista.
            Ora, na verdade só os que procedem conforme essa segunda opção consentem num exame de produções mais recentes como "literárias" efetivamente. Pois, considerar pós-modernista apenas os investimentos formais dos concretistas e de Lispector, implica descartar parâmetros que fogem a esse critério formal do literário, consagrado pelo modernismo. 
        Em nível universitário, houve, inversamente à posição de Sonia Khede, uma valorização do assim chamado "memorialismo". É o caso especialmente de Dalma Braune Nascimento, e de uma publicação de pesquisa sobre memória de agentes históricos considerando assim o sujeito da terceira idade.
            Mas é significativo que Dalma Nascimento tenha escolhido para estudo de sua valorização do novo memorialismo, o Mulher no Espelho, de Helena Parente Cunha. A narradora está diante de um "espelho" que se constitui de uma outra narradora, que a estaria narrando. O "eu" da narradora que está sendo narrada por essa outra, é constituído na duplicidade narrativa assim construída, e suas memórias estão sendo refletidas problemática e dialogicamente, nessa alteridade.
           É relativamente ao espelho, e conflitivamente em relação a ele, como a um outro, que o "eu" da narradora a ser narrada se constitui, e é outramente narrado. Eu considero esse procedimento formal, mais modernista que de fato pós-modernista, na medida em que o "eu" é positivamente constituído como uma categoria unitária, não problematizada nesse parâmetro ocidental.
          Nascimento não deixa de tematizar a alteridade cultural quando se trata de valorizar o novo memorialismo: "os avanços da Psicanálise, da Etnologia, da Sócio-Linguística, da História e de áreas correlatas recuperam aspectos marginais, luminosos e extraviados do discurso instituído".
           Mas ela de fato não considera isso inteiramente novo: "Por outras vias e referentes, retomam-se sementes do Romantismo do século XIX, indo à busca de nostálgicas matrizes, quando o exótico, o estranho, o bizarro, o grotesco, a negritude, o bárbaro - sem maniqueísmos redutores - passam a ser repensados, ganhando voz como categoria estética".
          Antes, já havia situado o empreendimento novo memorialístico - novo apenas naquela acepção de que estava se revelando uma tendência da prosa mais atual - numa clivagem do subjetivo e do histórico: "Pois, o memorialismo, esse gênero híbrido, flutuante, para muitos 'menor' e 'sem peso histórico', ora tendo no sujeito pessoal seu objeto, ora como objeto o sujeito histórico,propicia ampla esteira de questionamentos bem mais densos do que, à primeira vista, se revelam".
          Entre a "memória afetiva, involuntária, dos dados da consciência, dos signos sensórios proustianos", e a "memória sociológica", que "põe à nu as mazelas do corpo social", ela instalava assim o "campo de frequentes investigações literárias e interdisciplinares".
           É interessante assim que Otavio Paz ("Os filhos do barro"), um dos primeiros a consagrar o Pós-modernismo, tenha sugerido definir por essa rubrica precisamente a ruptura para com a tradição do novo, ou da revolução permanente da forma, característicos do "modernismo".   
             A ambiguidade da rotulação sobre o que é Pós-modernista ou ao menos não formalista, podemos ver que não se elide mesmo quando o trânsito do conceito está suficientemente liberado. Em Hucheon, há uma subreptícia polêmica a propósito do estatuto do Novo Romance e do Novo novo Romance, ambos franceses, vindos a partir do manifesto de Robbe-Grillet e cultivados desde então, entre Nathalie Sarraute, Michel Buttor e Claude Simon.
          Ela não os considera pós-modernos, mas registra os que consideram. Whilde, Brooke-Rose e Lodge,  segundo ela, “encontram espaço para introduzir, de forma sorrateira” o novo romance e o novo novo romance franceses, na atribuição de pós-modernista.    
          Recentemente, já sendo o caso da segunda década do século XXI, tenho constatado um declínio do investimento terminológico e conceitual da "Pós-modernidade".
         Várias transformações importantes estética e historicamente ocorreram nesse ínterim - por exemplo, em termos de afetação do plano estético, houve a revolução da transmissão televisiva, que se tornou planetarizada a partir da tv por assinatura, com acentuação da interconexão que já vinha ocorrendo, entre produção cultural e difusão de massas; a revolução das possibilidades privadas de tratamento de imagens pelos aparatos da informática; além de consideráveis mudanças sociais introduzidas pelo fato das "redes" de socialização da Internet.
            Quanto à transformação histórica, à criação da Cei, assinalando o fim da guerra fria, sucede-se a internacionalização da economia ("globalização") e a informatização da sociedade. O planisfério tornou-se objeto de um novo consenso geopolítico, a realidade do conflito norte-sul, com uma linha dividindo o mapa em dois hemisférios como contextos sócio-políticos, ao Norte o mundo desenvolvido, ao Sul o subdesenvolvido.  
        Mas paradoxalmente, em vez de contribuir para a sedimentação dos conceitos antes lançados sobre as inovações do período de transição ao terceiro milênio, desde a segunda metade do século XX, a "globalização" solve algumas das possibilidades antes sugeridas.
            Como registrei na minha publicação recente ("O Pós-moderno, poder, linguagem e história", ed. Quártica), o que foi muito ventilado na década de oitenta como a oposição de Daniel Bell entre modernidade centrada no setor secundário da economia (indústria) e pós-modernidade centrada no terciário (serviços), na verdade revela-se hoje impossível. A informatização da sociedade significa a dependência em relação à indústria eletrônica, de  praticamente tudo do terciário terciário que está sendo canalizado à Internet.
            Após a elaboração desse estudo, tive conhecimento de uma conclusão similar à minha, a de Wilson Cano ("Reflexões sobre o Brasil e a nova [des]ordem internacional"), que desde os anos noventa já se mostra cônscio de que a união europeia e o que chamou neoprotecionsimo europeu implicam um novo foco na indústria, considerando assim "equivocadas" as "teses da 'desindustrialização' e de 'terciarização' ".
            Na verdade, é como terceira revolução industrial que os acontecimentos recentes estão sendo visados, em vez de uma nova sociedade de serviços.  
           Como processo industrial, portanto, tende-se a ver na atualidade sócio-histórica e econômica um prolongamento da modernidade definida em termos de industrialização. Além disso, a linguagem computacional - grosso modo, o acesso planetarizado à Internet e às tecnologias informáticas - é  um tema bem inverso ao parâmetro da alteridade cultural.
          O "viva as margens" que Hutcheon destacou para servir de lema ao pós-modernismo, parece destoante dos novos rumos de um integracionismo inevitável pelo próprio fato da assimilação tecnológica ter vindo a se mostrar como o acontecimento mais marcante e de consequências mais abrangentes do cenário recente.
             Mas se esse horizonte tecnológico poderia afinal vir a ser considerado mero "farol" a encobrir transformações culturais muito mais decisivas, tais como as que inerem aquelas áreas interdisciplinares referenciadas em Nascimento, teríamos que ser criteriosos quanto ao que ocorre em seu âmbito nesse ínterim.
            Podemos afirmar que a neutralização dos temas que suportaram a positividade de alguma assinalação de ruptura, com relação ao modernismo e/ou à modernidade, pode também ser detectado aqui, ou pelo contrário, podemos constatar que rupturas avançaram ou foram consolidadas?
           O exame da trajetória da rubrica "Pós-moderno" mostra que, se bem que numa empostação diferente, torna a haver uma problematização, após o que pareceu a estabilidade conquistada do conceito.
          O locus do exame dessa matéria, como já se deve ter compreendido, abrange as mudanças que tiveram lugar no entremeio da década inicial do terceiro milênio, e por isso tenderíamos à confusa dispersão, se não focalizássemos os tópicos referentes ao exame.
          Aqui restrinjo a temática a uma análise da terminologia que vem se mostrando destacável como mais corrente em porções de época discerníveis.

  
   = O propósito da terminologia de discurso, texto e memória

          A princípio, houve o rise do hoje designado "pós-estruturalismo", que a partir da psicanálise lacaniana e como diálogo crítico em relação a ela, focalizou entre Foucault, Deleuze-Gauttari, Derrida, Baudrillard e outros,  o "discurso" como referencial analítico ampliado.
          Vimos que as diferenças do texto após os formalismos que tem seu limite nos anos cinquenta, implicaram em vez do discurso, uma temática da memória.
           Podemos obter uma certa contiguidade entre esses dois referenciais - por exemplo, na temática proustiana que pode envolver tanto Freud quanto Deleuze, em termos de uma ênfase no inconsciente como uma teoria da memória. Os formalismos - o modernismo típico - são muito relacionados a esse encaminhamento estrutural. Inversamente, a memória foi tematizada como ruptura em relação a ele - como na opinião de Hutcheon, que por isso não pode lidar com o Novo Romance nos termos não formalistas do seu conceito de pós-modernismo.
             Entre as transformações disciplinares que se tornam importantes desde inícios do terceiro milênio, creio que o preponderante seria o avanço da "textolinguística". Temos importantes investimentos da linguística textual em trânsito no país - como os estudos de Travaglia, Villaça Koch e Fávero.
             Nada menos que a  transição de uma definição da linguagem como sistema ou estrutura, a uma definição da linguagem como uso, está envolvida nesse deslocamento das linguísticas da palavra e da frase, para a linguística que define o texto como unidade mínima da língua.
             A seguir estarei examinando temas ligados a esses tópicos, extraindo exemplificações do modo como permitiram articulações teóricas ligadas a temáticas de ruptura em relação à metade inicial do século XX, e questionando, à luz de situações atuais epistêmicas e estéticas, os seus prognósticos e princípios antes estabelecidos.
           A interligação desses termos - discurso, memória e texto -  está ainda em trânsito na teoria. Não se trata de uma posição arbitrária da preponderância deles, como se pudesse algum já ser dado como "superado" - na verdade, o pós-estruturalismo, por exemplo, continua um foco de forte investimento acadêmico, e assim também a própria psicanálise.  Nem se trata de lidar com eles como se pudessem ser dogmaticamente definidos, além da variação teórica em que são problematizados, por isso mesmo que nessa variação, encontra-se tanto interligações relevantes quanto declarações de antagonismos por princípio.  
           Mas só o fato dos contrastes entre as posições psicanalítica e pós-estruturalista assinala o quanto não devem ser minimizadas para exame, quando se trata de compreender o que se considera em ruptura para com ambas, continuando porém epocalmente concomitante ao exercício delas. Parece-me assim oportuna a proposta de rever algo da inserção histórica desses termos "chave".

                    Desde já registro que não me parece possível afirmar ausência de ruptura "pós-moderna" em se tratando de um conceito histórico.
          Considero a pós-modernidade em conexão com o que designei a deslegitimação do discurso geoegológico do Ocidente - pelo qual haveria uma centralidade do processo de modernização como objetividade histórica a mundializar-se a partir de um Sujeito histórico ocidental que produz a modernização como racionalização -  conjuntamente em termos científicos, tecnológicos e políticos.
           Hoje não seria possível afirmar os grandes relatos dessas versõs teleológicas da história, que vinham funcionando desde princípios do século XIX de forma tal que o Imperialismo não podia ser equacionado no bojo mesmo do processo de "modernização" da margem. Por outro lado, os termos políticos da sociedade liberal (= Estado constitucional de direitos) já não podem ser de forma simplista reduzidos a uma invenção do Ocidente, o que dependeria da manutenção daqueles relatos de fundo positivista, sócio-evolucionistas, na antropologia social. 
      A terminologia do Império, após a guerra fria, para designar a hegemonia estadunidense teria que ser revisada hoje, a partir dos acontecimentos da união europeia e do fenômeno da internacionalização da economia (empresas multinacionais). Em todo caso, não creio que alterasse o que a terminologia introduziu como impossibilidade de continuação da visão teleológica da história.
        Não há mais possibilidade -até pela questão ecológica - de interpretar o desenvolvimento tecnológico em termos de um processo possivelmente mundializado, mas por outro lado, a assimilação desvantajosa das economias de margem pelo imperial-multinacional-capitalismo  tem se tornado cada vez mais inevitável.
            Além disso, tornou-se impossível supor, como ainda fazia  Foucault no Curso sobre governamentalidade, que o neoliberalismo econômico implica de fato um Estado mínimo e uma liberação de costumes. Desde o governo Thatcher na Inglaterra, que junto com o governo Reagan nos Eua demarcam o neoliberalismo econômico, estudos sociológicos  já comprovaram tratar-se de intervenções nas comunicações de massa com vistas a privilegiar posturas reacionárias.
           Stuart Hall produziu uma ampla pesquisa sobre o neoliberalismo de Thatcher nos termos de um "populismo autoritário" visando modelar "toda a textura da vida social, alterar toda a formação da subjetividade e da identidade política, e não simplesmente impingir algumas políticas econômicas" a partir do que seriam "agressivas correntes neoliberais da ideologia, nas interpretações do sexo, da família e da sexualidade, ou no que diz respeito ao racismo e a política étnica" (cf. Michelle Barret, "ideologia, política e hegemonia", em Um mapa da ideologia, ed. Contraponto).
        Assim, como espero ter ficado claro, "neoliberalismo" como política econômica  é o contrário do que sugere o nome, e em vez de liberdades políticas, trata-se dos piores conservantismos anti-libertários acoplados ao retrocesso das conquistas sociais e trabalhistas que já haviam sido obtidas por políticas econômicas menos injustas.
           Consideradas as proporções dos ambientes históricos, considero essa visão convergente com minha visão do neoliberalismo em termos de política geral da "globalização". Hall foi significativamente criticado pelos marxistas que pensam haver apenas a problemática econômica (= estrutural).
          Na publicação citada, conceituo o capitalismo histórico em termos de assimetria internacional do capital, de modo que só uma explicação estrutura todos os fenômenos da transição histórica industrializante, na margem ("terceiro mundo") e no Centro (Europa e Eua). Essa explicação engloba, portanto, a própria oposição e fornece a construção dela. Não há explicações diversas para o "desenvolvimento" do Centro e o que se trata equivocamente por "atraso" em se tratando de nações pós-coloniais.
            Como assinalei, nós devemos evitar perder o foco, em se tratando desse tema candente do Pós-moderno, entre a Pós-modernidade histórica e o Pós-modernismo cultural/estético.
            Após o registro do meu conceito de Pós-modernidade histórica, torna-se inserível o desenvolvimento da temática específica já proposta.
          
    

    1 )   Estória, Discurso e Reflexividade


    a) Hutcheon: discurso e reflexividade
        Hutcheon lida com uma oposição entre “reflexividade autotélica” e “auto-reflexividade” conforme o que situa respectivamente em termos de modernismo e pós-modernidade.
           Por "reflexividade" parece-me que seu texto autoriza compreender a noção de contexto ou textualidade, produzido como tal em termos da leitura de algo como uma obra, não apenas um conjunto de mensagens e de signos desarticulados entre si.
           O Novo Romance e especialmente o de Robbe-Grillet, ela considera modernista porque sua reflexividade é autotélica, isto é, construída de forma intencionalmente independente de todo significado a ser pressuposto jazendo no exterior do texto, no mundo. Essa é uma interessante definição de formalismo  ou investimento formal em literatura.
          Mas confesso que a apreensão do que não seria autotélico, em termos de reflexividade, não me pareceu claro em Hutcheon. Ela apresenta a auto-reflexividade como o parâmetro dos textos pós-modernistas, mas se por outro lado eles não são simples recuos ao já conhecido Realismo, e pelo contrário, implementam rupturas reais, não podemos afirmar que o texto reflita meramente algo pressuposto já dado no mundo. Muito menos refletiria a reflexão de um sujeito suposto substancial, invariável, como nos antigo romance psicológico. Hutcheon tematiza por essa mesma característica, investimentos muito diferentes: Umberto Eco e Doctorow. Rushdie e literatura feminista, etc.
         Hutcheon parece associar a auto-reflexividade a um novo investimento do "discurso", mas pelo que apurei, por esse termo ela está entendendo algo a ser produzido como o próprio deslocamento ex-cêntrico de que se trata em cada caso. Por exemplo, a literatura feminista, ou da negritude, estaria investindo o "discurso" da mulher ou da etnia, e tomando posição em relação a sua inserção nele enquanto se tratasse de uma mulher ou de um negro.
         Contudo, não logrei discernir se com isso ela está conceituando a construção ou a desconstrução do "discurso". Pois, em todo caso, como vimos ela começou por afirmar que o pós-modernismo não procede por uma ruptura imediata da forma ou dos pressupostos que designa "ideológicos", mas primeiro os tematiza para depois subvertê-los. Por isso ela utiliza, como seu conceito determinante do pós-modernismo, a paródia.
          Além disso, Umberto Eco não descontroi propriamente aquele horizonte histórico-estilístico outro - A Idade Média, o mundo do misticismo moderno ou a colonização de ilhas distantes - que, inversamente, reconstitui investindo a própria forma documental em que tais realidades foram registradas e assim construídas em termos de sua historicidade. 
           Doctorow e Christa Wolf implicam desconstruções - já pelo distanciamento linguístico com que a matéria histórica, logo, a estória é tratada com toda relevância.
           Assim, Umberto Eco desrealiza todo histórico ou substancial em função dos discursos de que seriam meros efeitos, enquanto Doctorow e ao que me parece, também Wolf, procedem inversamente. Esses são ainda, investimentos bem diversos de tematizações atuais de um sujeito problematicamente inserido na sua experiência literária - como Rushdie, Berger e Pichon.
        Outro problema no tratamento hutcheano do pós-modernismo é que ela utiliza Foucault em termos de um crítico da ideologia a partir do que eu situaria como desconstrução da universalidade do Saber ocidental. Mas em Foucault, discurso e ideologia são noções nitidamente opostas.
        Conforme ele, o  discurso pertence ao inconsciente-linguagem (= estrutura), a ideologia são noções conscientes. O discurso não é diferente do Saber (= ciência) enquanto linguagem sedimentada, articulada, um enunciado da Verdade que contem necessariamente índices de demonstração argumentativa, provas, métodos. A ideologia são quaisquer opiniões que se tenha sem necessidade de se pensar como demonstrá-las. O discurso é um a priori histórico numa sociedade dada. Foucault desfaz qualquer concepção de que exista numa sociedade, alguma ideologia dominante.
         A articulação da linguagem sedimentada da ciência e o inconsciente-linguagem não é feito em Foucault partindo do inconsciente subjetivo. O Saber se articula ao Poder e a formas de Subjetivação (desejo), numa época e sociedade determinadas, formando o inconsciente social dessa sociedade, que é efetivamente o objeto do estudo foucaultiano por exemplo em relação à modernidade ocidental.
          Nem as instituições de produção de Saber, nem as instituições de governo, nem as  fórmulas de relações interpessoais, tem possivelmente para si, conscientemente, esclarecido a sua articulação que se trataria de reconstuir por meio da análise do discurso produzido (documentos, monumentos, etc.) desses setores articulados como partes do "discurso" inconsciente de que se trata historicamente. A consistência da proposta foucaultiana ainda hoje é assunto polêmico - ver por exemplo, as críticas de Baudrillard e Derrida.
          Mais uma dificuldade do texto de Hutcheon me pareceu a contradição quanto ao conceito de representação. Como se sabe, esse é um ponto importante de oposição entre Realismo e Modernismo. Os modernistas criticam o Realismo como estilo anterior, porque se limitava a uma "representação" do que supunha-se ser real, enquanto o modernismo pretendia se limitar a apresentação de si como produção estética que como tal não poderia de ser problematizante do Real. A essa altura, a mecânica quântica e a Relatividade, de fato já haviam impossibilitado o ideal da representação unívoca da natureza.
           Hutchon está afirmando que o pós-modernismo se distingue de ambos, e precisamente quanto à questão da Representação.
           À página 64 (tradução brasileira, ed, Imago), Hutcheon define o seguinte ponto a propósito da representação: “A superficção e o Novo Romance são como a arte abstrata; apesar de transgredirem os códigos de representação, na maioria eles não os incomodam (...). Mas quando a ela recorrem, os romances pós-modernos problematizam a representação narrativa”.
           À página 211, fica bem claro que devemos opor decisivamente representação narrativa e pós-modernismo: “Pode-se considerar que a crítica feminista do patrimônio e a crítica pós-modernista da representação (em todas as formas artísticas) tem como interseção o ponto da questão dos sexos e da diferença sexual...”.
           Mas à página 78, pelo contrário, Hutcheon afirma enfaticamente que “A arte pós-modernista que venho descrevendo e vou continuar a descrever neste livro é histórica e política de uma maneira em que grande parte da metaficção não o é. Ela não pode ser definida como se eliminasse a representação e a substituisse pela materialidade textual ...”. 
        Na verdade, esse é um dos temas mais difíceis quanto a pós-modernidade. Vemos que Foucault, em As palavras e as coisas, define o a priori histórico da modernidade em termos epistêmicos, como a emergência das ciências que à diferença da época anterior, não são ciências da representação. Elas produzem seu próprio objeto, como ciências estruturais. Mas segundo Foucault, as ciências humanas, que emergem pela mesma altura, nos inícios do século XIX, são pseudo-ciências porque conservam como tarefa sua, restarurar a representação, na forma de alguma visão de mundo unívoca em termos de um universal do Homem.
          Pessoalmente não concordo com essa tese sobre as ciências humanas, mas aqui o importante é notar que se de fato a modernidade epistêmica implica ruptura do objeto científico em relação à visão de mundo unívoca, ou representação, mesmo que as ciências humanas se solvessem em ciências estruturais - como desejaria Foucault - isso não implicaria uma pós-modernidade. Pelo contrário, seria a modernidade concretizada. 
          Já Lyotard observou que somente num parâmetro bem recente ocorreu que as ciências se auto-posicionassem como linguagens autônomas. Ao assim procederem, estariam rompendo com a modernidade, definível nos termos de um "discurso" da ciência generalizado como Racionalidade. Lyotard insere portanto  uma rubrica do pós-moderno em termos de campo epistêmico.
         Mas uma vantagem de Hutcheon em relação a alguns outros posicionamentos condenatórios do pós-modernos, pode ser visada como sua restrição do referencial, não obstante termos notado que ela continua a mantê-la ampla. Jameson, por reduzir como teórico marxista, o pós-moderno a um efeito da base econòmica, o define como lógica cultural do capitalismo tardio.
           Assim, tudo o que se produz na cultura, a partir de um certo momento histórico, torna-se igualmente pós-moderno, criticável pelo mesmo motivo. Hutcheon especifica que está tratando um fenômeno estético circunscritível.  Dallas (o seriado de televisão), ou Amadeus (o filme comercial) nada tem a ver com os fenômenos esteticamente importantes em termos de rupturas conceituáveis na atualidade à exemplo da música de John Cage e a arquitetura de Bofill.
         Poderia ser que tratássemos com proveito, o ex-cêntrico e o discurso, em termos de categorias antagônicas em vez de convergentes.  A oposição que torna esses dois termos pertencentes a níveis autônomos em vez de convergentes, podemos esclarecer a partir da decalagem literária entre estória e discurso, como dois níveis que além disso são inerentes a toda linguagem – isto é, também à fala.

     b) Todorov e a  categoria de discurso em teoria literária

         
           Em seu pronunciamento no congresso de Baltmore (1966) a propósito da "Controvérsia Estruturalista" (cf. título dos anais publicados por Macksey e Donato, ed. Cultrix), Todorov desenvolveu interessante aproximação à terminologia opositiva de estória e discurso.
           Em se tratando de fala, o discurso é como que a mecânica operatória da língua, enquanto a estória é a apresentação de fatos ou o referente da fala. Mas nesse caso, a pessoa que fala não é um narrador ou um autor implícito, e sim o interlocutor presente cujo destinatário não tem que de algum modo discernir como se situa, pois já está aí situado à sua frente e dirigindo-se a si a partir de referentes supostos existentes independentemente da interlocução. A questão do discernimento do sentido da fala do interlocutor, não é primeiro literária, e sim psicológica. 
           Mas no caso da literatura, o referente ou a realidade de que se trata a partir da articulação do discurso e da estória só tem a existência que lhe é atribuída pelo próprio enunciado escrito. Isso afeta particularmente o discurso, de modo que ele vai ter na literatura uma abrangência que não tem na fala.
            Todorov mostra que antes de Benveniste, os formalistas russos já haviam tratado essa oposição, e mostrado exemplarmente que se enquanto as coisas correm em nível de estória o narrador não é uma categoria problemática, as coisas não são assim em nível de discurso porque é nesse nível que a existência do narrador enquanto fato de sentido ou constituição de si como personagem – conforme o caso – vai se construir.
           Não poderia haver, portanto, uma reflexividade que não fosse autotélica -  retomando a questão da terminologia hutcheana. O oposto dela seria um realismo tal que só subsistisse a estória, mas isso o próprio Realismo tradicional descobriu ser impossível, dado o quanto foi acusado de didaticismo. A meu ver Hutcheon realmente não conceituou alguma ruptura tal que esse a priori se mostrasse superado, e no entanto vários dos seus exemplos, pelo modo como ela mesma procede a paráfrase, autorizam que se afirma que algum nível da oposição benvenistiana foi superado ou está sendo questionado.
          Conforme Todorov, o exemplo preferido dos formalistas russos era a inversão dos tempos verbais: “é evidente que narrar um evento posterior antes de outro que o precedeu revela a intervenção do autor, ou melhor, do sujeito da enunciação”.
           Ele mesmo, Todorov, se ocupa de um outro exemplo, o de Proust. Nesse trecho que Todorov analisa, Proust compara três tipos de anfitrião a prodigalizar amabilidades: o pequeno burguês, o grão senhor e o artista. Há aí um crescendo porquanto cada um dos seguintes coloca o antecessor numa situação de inferioridade quanto aos poderes de agradar. Nós não descobriríamos o quão limitados eles são no pequeno burguês se não fôssemos alguma vez a pessoa com quem um grão senhor deseja ser amável, mas quando ocorre de se um artista a prodigalizar amabilidades conosco então percebemos que também o grão senhor era assim limitado.
           Mas essas reflexões que resultam como uma lição ou uma verdade comunicada, Proust faz preceder pela informação sobre Elstir, o artista. “Ele me prodigalizou uma amabilidade que era superior à de Saint-Loup, assim como esta o era à afabilidade de um pequeno burguês.”.
            Até a palavra amabilidade, portanto, trata-se exclusivamente do nível da estória. A comparação que se segue introduz o nível do discurso, conforme Todorov, o qual se complementa na lição ou “reflexão geral”, a partir do enunciado seguinte: “Comparada à amabilidade de um grande artista, a de um grande senhor, por mais encantadora que seja, parece o desempenho de um ator, uma simulação”.
          As marcas do discurso são destacadas por Todorov, mas explicitamente ele só designa a mudança do tempo verbal. Aqui, porém, vemos que também ao nível da estória está sobreposta uma marca discursiva, posto que se trata do pronome pessoal: “Il prodigua pour moi...” .
          A decalagem de níveis implica que o nível do discurso é autônomo em relação ao da estória que se refere à realidade – ficcional ou referencial de mundo. Essa autonomia não se relaciona aos personagens (Elstir ou ao narrador) e ao ato narrados. A comparação e a reflexão,conforme Todorov, “referem-se apenas ao sujeito da enunciação e assim afirmam a presença da própria linguagem” enquanto narração.
         Como já acentuei, a conceituação do discurso nessa acepção implica o estatuto secundário da estória, por outro lado descartando-se a centralidade do que antes se compreendia como "ideologia".
            Os a prioris discursivos antecedem, na acepção de que pre-dispõem, o Sujeito que os atualiza como se tratasse da subjetividade para si, posto serem os a prioris da própria linguagem em dois níveis de sua constituição: estilístico e temático. Infletir a inapreensível contiguidade da consciência do Sujeito ao discurso, tornar manifesta de algum modo em vez de preservar a soldagem, é tornar "autotélico" um texto literário que só assim se entende crítico. Mas continua a haver o problema do estatuto do discurso - até que ponto a crítica é de uma ilusão ou afirmação de uma realidade inultrapassável como condição do Real.
          Desde já podemos notar que Eugenio Donato, pronunciando-se neste mesmo congresso, encarou criticamente a nova importância do discurso, intencionando romper com o dilema assim exposto. Ele avançou decisivamente no sentido de recuperar o estatuto da estória, mas não chegou a apresentar uma alternativa ou um novo rumo.
          Limitou-se a colocar o problema suscitado por uma preminência tão marcada - em vez disso poder ser encarado como alguma panacéia. Ao citar Derrida como um possível referencial da requerida alternativa conceitual, a meu ver ele apenas reificou o estruturante dessa preminência, ao falar de uma "tirania do Signo" como o que teria sido conceituado na Gramatologia.  Na  verdade, Derrida pretendeu criticar um parâmetro de discurso, todo aquele que deriva do a priori Lacan-saussuriano da linearidade do significante, com suas oposições decorrentes tais como língua/fala e significante/significado.
          Ao estipular a escrita, em vez da oralidade, como o horizonte efetivo dos estudos linguísticos, Derrida supõe que a linearidade do significante não poderia ser conservada, porque a escrita não é universalmente modelizável pelo sistema alfabético, e há sistemas não-lineares. ´Lembrando que para Derrida, toda linguagem é escrita por ser um sistema de marcas significantes (não existe sociedade sem escrita). Mas a partir daí, não creio que ele mesmo tivesse rompido com o a priori que designarei estrutural, do discurso, enquanto pré-disposição do "Sujeito qualquer" - como na expressão lacaniana.
           Na continuação das postagens,  tenciono aproximar o manifesto do Novo Romance, elaborado por Robbe-Grillet, esperando assim  favorecer o exame das conexões entre suas enunciadas rupturas e a inserção da problemática do discurso. (...)
                                                      Postado em 31/10/2012

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          01 / 11 / 2012

     

I) Posicionando a questão de uma era atual :











































          Quando Jameson tematiza a persistência do realismo no terceiro mundo, por exemplo, é como algo a ser tratado como sintoma. A objetividade de que se trata no limite é ao mesmo tempo maturação psíquica como desfazimento da substancialidade do significado.
             Um desejo “realista” - tendo por “realismo” a narração centrada num sujeito substancial para quem havia um mundo igualmente substancializado – seria um desejo sintomático de sua imaturidade. Jameson chega mesmo a falar no corpo narcisista do sujeito no terceiro mundo, sua “inteireza” infantil. 
           Aqui não se trata do mérito da questão – se podemos ou não assim definir algo como narrativa do terceiro mundo necessariamente “realista” , dado que o desejo na margem não poderia ter atingido sua maturidade, uma vez que em termos históricos essa sociedade não chegou ao split público-privado. Mas sim notar que desde aí, Jameson não se apercebe de um outro fenômeno ocorrendo paralelamente. 
            No próprio Centro , em vez de apenas uma dispersão esquizofrênica da cultura, começa a haver um recuo que seria espantoso se conservássemos esse determinismo sócio-psíquico que se tornou o freudo-marxismo a partir do aproveitamento de Lacan na esquerda – como também em Althusser.
          Por esse aproveitamento as limitações do marxismo ortodoxo, justamente “realistas” dado o situamento epocal de Marx – traduzidas na sempre mais impossibilitada dicotomia de base e superestrutura (“ideologia”) foram superadas a partir de uma concepção da produção cultural em termos de “ato socialmente simbólico”. A formação da subjetividade não pode agora ser tratada nos termos, tampouco, daquela outra dicotomia do sujeito individual burguês e sujeito de classe.

            O inconsciente como processo de maturação psíquica ou objetividade implica a cisão necessária de público e sujeito privado lacaniano – efeito do significante, não substancial para si. Inversamente a esse determinismo universal, Foucault, Deleuze-Guattari e Derrida se colocaram como propostas de diferenciação cultural ou histórica, mas não chegam a romper com o inconsciente em termos de determinismo do significante. Apenas o processo pode não ser o mesmo que o “Édipo” dependente da evolução social capitalista ocidental. Até mesmo Derrida entende a Gramatologia como enunciado resultante da necessidade histórica definida nos termos da evolução do Saber (linguística e crítica da metafísica).

           Não há possibilidade do objeto ser e não ser expressivo de um regime significante determinado e reconstituível por análise do discurso. Se o objeto é correlato a um discurso tal que ele não possa ser dado no inconsciente como “perdido”, se uma significação para si resta coagindo o discurso à contradição ou ao dogmatismo substancialista da totalidade, porque resta a parcialidade do objeto no inconsciente, seja como for que se varie a terminologia da objetividade, o resultado conceitual, o que o analista do discurso fará, será a leitura de um sintoma.

           Mas a partir dos oitenta, o recuo espantoso se verifica - Trata-se por exemplo do que em Linda Hutcheon é manifesto como sua impressão positiva da hermenêutica heideggeriana como o que está sendo parodiado no que ela chamou auto-reflexividade. Essa paródia seria ao mesmo tempo uma necessidade positiva de constituir significação de mundo, que o modernismo ou estruturalismo apenas havia recalcado.
           Renault-Ferry seriam o sintoma conspícuo. Ao tratar o que designaram os “sixties filosofantes”, simplesmente não conseguem perceber a intransponibilidade do horizonte que examinam – um conjunto tão heteróclito de tendências, por um lado, mas por outro lado podendo ser agrupado pelo viés do “inconsciente” a partir de Lacan – em relação à hermenêutica. Chegam a produzir uma junção incompreensível da “hermenêutica” grafando-a “nietzchiana-heideggeriana”. Ignoram, portanto, que a conexão a essa altura estava entre Freud e Nietzsche, como formulações do inconsciente, opondo-se decisivamente a todo existencialismo proveniente da “consciência”.
          Citam a expressa condenação foucaultiana do parâmetro da consciência, mas contraditoriamente afirmam que o referencial da condenação é o marxismo, apesar de terem incluído Althusser no seu “tipo-idel” dos sixties-filosofantes.
          Pretendem estar construindo, portanto, ainda que não o citem, aquilo que se tornou a pedra basilar da fenomenologia-hermenêutica, e a partir da sociologia compreensiva de Weber veio a se consolidar com essa mesma terminologia. O tipo ideal weberiano, que depois se tornou o homúnculo paradigmático da sociologia de Schutz, é o cerne da concepção centrada na consciência, pois o que ele reconstitui é um complexo de significados que para si totalizam efetivamente uma significação da experiência possível de um sujeito num mundo assim tornado representável por/para ele.
            Não há decalagem entre a prática e o significado dela. Ambos somam um “mundo” de sentido a ser interpretado como significado dos valores atuais desse mundo. Nenhum sujeito atualiza totalmente toda a gama de significados envolvida nesse sentido da experiência que é a sua, mas todo sujeito atualiza uma parte dela, porque se trataria do mesmo “mundo”.
            O inconsciente nada tem a ver com a significação nos termos dos seus conteúdos quaisquer possíveis. Trata-se de um algoritmo significante, um funcionamento possível do signo. Como uma máquina, o funcionamento das peças nada tem a ver com o que realmente se faz com ela. O analista do discurso é como o projetista que vai recompor o esquema das peças e circuitos da máquina. Mas em relação ao funcionamento em questão o efeito é independente.
              A hermenêutica elide o funcionamento da máquina, pensa que está explicando tudo o que acontece apenas descrevendo um uso possível dela. A significação da lavadoura de roupas é a roupa limpa. Tudo o que acontece é que a roupa é limpa, há um valor da limpeza, esse valor é humano em geral, mas cultural em particular, etc. Obviamente não é nada disso, e a máquina não poderia ser consertada se mantivéssemos um limite assim.
               A contradição manifesta na pretensão do tipo-ideal de todo o pensamento francês de 68 – e ao mesmo tempo, somente os estruturalistas e pós-estruturalistas são analisados para prestarem-se a tal ridículo - já se coloca a partir de que sua primeira característica é a temática comum do fim da filosofia. Não só essa temática é explicitada como muito anterior a eles, como ainda assim eles são arrolados como sixties – filosofantes, e sua produção tratada como “filosofia”.
             Não há concepção, portanto, do que efetivamente eles conceituam como seu exercício pensante: psicanálise (Lacan) e esquizoanálise (Deleuze-Guattari), que não são apenas teorias, envolvem atendimento clínico. Gramatologia (Derrida), arqueologia/genealogia (Foucault), que são análises do discurso respectivamente cultural (literário e/ou histórico-filosófico) e histórico (documentos institucionais). 
          Além disso, quanto a Deleuze, começou como historiador da filosofia, escrevendo vários livros sobre filósofos importantes que consagra como decisivos à formação do seu próprio pensamento à exemplo de Hume, Spinoza, Nietzsche, Leibniz,  Kant, e valorizando o exercício filosófico, por exemplo, em O que é a filosofia? escrito com Guattari. Especialmente seu estudo sobre Spinoza é uma das referências consagradas da biografia habitualmente utilizada a propósito.
            Em comum a anunciada ruptura para com toda concepção hermenêutica-fenomenológica ou parâmetro da consciência, reportada como característica da geração anterior, especialmente Sartre e Heidegger, cuja produção estava ligada aos acontecimentos da guerra contra os totalitarismos europeus alemão/italiano.
              O que foi designado por Foucault a interpretação infinita, a partir de Nietzsche, foi no mesmo momento definido como a consequência de que, se infinitiza-se a interpretação, então “não há nada a interpretar”. Não significa o que Renault-Ferry supõe como o espelhamento ilimitado do sujeito intérprete, como se Alguém interpretasse, mais alguém interpretasse o intérprete, mais alguém interpretasse o intérprete do intérprete, etc.
              Implica, ao contrário, que uma interpretação é o efeito do discurso em que ela se elabora: histórico ou filosófico, literário ou científico, religioso ou jurídico, relativo a um contexto subjetivo ou prático, etc. Não resta um mundo de coisas significáveis além do discurso que constrói alguma ordem de leitura objetiva.
                Mas obviamente essa subida de nível a uma ciência do significante, isto é, da materialidade do signo em termos de marcas inconscientes e regime programático tal que um outro nível independente, o da experiência consciente, pode ter lugar do jeito que se o performatiza mal ou bem, está relacionada a uma concepção de sociedade atual, a que o pós-guerra havia autorizado supor como de total emancipação do nível público, de modo que ao problematizar-se politicamente essa sociedade, ao se colocar em nível crítico a explicitação dos seus problemas, não seria mais de um ponto de vista coletivo qualquer que se o poderia tematizar – pois isso dependeria de uma significação coletiva, uma substancialidade identitária.
            Teria que ser uma problematização da interferência contraditória do público ao privado – como o biopoder, em Foucault, por exemplo. Mas isso ficou sempre menos investível, já não sendo possível por exemplo, em Derrida. Nenhuma totalidade devia restar pensável, nem a título de efeito de articulação.
              Assim, desde Derrida, torna-se expresso o fato de que não há possibilidade de se manter ao mesmo tempo o parâmetro do Ocidente como o que deve ser superado e o que condiciona a superação. É somente com relação ao Saber ocidental que a Gramatologia se coloca como evolução e necessidade histórica. Mas já desde Foucault, como assinalei, há ruptura para com o determinismo pensável nos termos edipianos, universais quanto ao processo em si.
            O que ocorre, após os anos noventa, contudo, é um retorno do que já havia sido dado como estágio anterior em termos de formação significante, como assinalei. Isso, junto à deslegitimação do Ocidente como referencial histórico desse processo evolutivo paradoxalmente não-positivista.
            A deslegitimação incide precisamente porque a independência dos processos de margem foi afirmada nesse ínterim. Ou isso prova que a margem não é como Jameson ou os determinismos universais pressupunham, ou em todo caso, que ela também evoluiu. Mas o que sobreveio à sua evolução foi o retrocesso unicamente pela força bruta do Centro, na forma dos golpismos e intervencionismos hediondos, tal que nenhum parâmetro funcionalista (“hermenêutico-fenomenológico”) ou significante poderiam situar além da mera sociologia empírica.
            O meu exercício conceitual, eu situo como crítica desse cenário recente, em que há conjuntamente uma problematização consequente de todo parâmetro determinista da objetividade e um recuo frente a essa problematização, devido a que a deslegitimação implica o investimento “neoanal” do evolucionismo positivista, isto é, totalizante do processo, nos termos únicos que restaram a um Ocidente-Império, portanto não racionalmente legitimável como Sujeito histórico da evolução social.
          Ele reproduz os estereótipos totalizantes dos anos trinta, como discursos de glorificação da força bruta na forma da disseminação de significados dados como comuns, imediatos, de “superioridade”. Nada disso o justifica, mas como síndrome autoritária característica, ele quer e não quer ser justificado, porque o Poder implica o arbítrio da suposta subjetividade coisificada/significada para si.
           Assim, o retorno da hermenêutica (“modernidade”) não é propriamente o do cenário dos anos trinta, e sim um deslocamento significante marcando em nível de discurso, o verdadeiro investimento do desejo que é o positivismo racista – já agora a superioridade de brancos ou de negros, tanto faz, contanto que seja do sujeito da força capaz de se impor sobre outrem antagonizado/explorado.
             Isso num cenário onde o sócio-darwinismo é impossível, a própria evolução biológica já não é a luta pela vida darwinista, etc., ou seja, tornando o recuo ainda mais espantoso. Mas de que forma não haveria, se a prática imperialista é o limite paradoxal do Ocidente enquanto disponibilizável para si como um Sujeito da história constituído a partir da disponibilização correlata de um seu Alter-ego: a margem selvagem, por copiar o seu processo evolutivo a fim de civilizar-se, não havendo alternativa senão essa, entre selvageria e civilização ocidental?
         A independência efetiva da margem em relação ao Centro implicaria a desconstrução essa oposição estruturante do imperialismo, mas a impossibilitação dessa independência, se feita a partir do Centro, implica do mesmo modo a desconstrução da oposição em termos de discurso geoegológico. Assim, o que procedo é a junção do discurso (geogológico) à sua prática (Capital-imperialismo).
           O onze de setembro de 2001 nos Eua e a quebra da estabilidade inglesa em 2011, não me parecem acontecimentos isolados, mas o que se deveria esperar a partir da deslegitimação – lembrando que nesse ínterim não houve propriamente uma estabilidade, mas um cenário de guerra permanente no Oriente Médio, paralelo ao alastramento dos populismos autoritários pela informatização da sociedade, que assim se pode mostrar não corresponder a qualquer consenso local, mas estar sendo imposto por políticas dirigistas.
            Nenhuma força bruta é ilimitada, no limite a destruição "nuclear" seria do próprio Centro, e os novos instrumentos do Saber e da Tecnologia, pode ser que ao contrário do que se diz, sirvam cada vez menos a parâmetros totalizantes. Por um lado, são sempre mais de uso privado, por outro lado, nada garante que frustrando-se a tendência, continuem a ser investidos pelo desejo.
              O resultado histórico do positivismo foram as duas guerras que acabaram com a supremacia mundial europeia, e a repetição do sintoma provavelmente conduzirá do mesmo modo à exaustão da supremacia imperialista generalizada (“multinacional”).
             A partir daqui podemos ler as produções estéticas que confluem desde a segunda metade do século XX, não deterministicamente, mas relacionadas à problemática cultural assim conceituada.


                                                       
  2)  Novo - Romance e (Pós-)Modernidade
            








































          Hutcheon propôs o termo " metaficção " para definir todo situamento literário pós-realista. Mas somente o pós-modernismo seria uma metaficção historiográfica. Contudo, desde aí ela não desenvolve alguma questão dos parâmetros novos da própria historiografia. Inversamente, como vimos, retorna a uma sugestão da necessidade da hermenêutica.

              De fato, por surpreendente que seja para nada menos que uma Poética do estilo, Hutcheon não chega, de fato, a localizar o “pós” do “modernismo”, como algo que “substituiu o humanismo liberal, mesmo que o tenha contestado seriamente”, não sendo algo novo, podendo apenas “servir como marco da luta para o surgimento de algo novo”.

           Que a ilusão da totalidade não é inerente ao funcionamento sistêmico da linguagem,  Robbe-Grillet, em seu manifesto “Por um novo romance” pode exemplificar pela sua verve crítica contra Sartre:



                “E o que A Náusea nos propõe? Evidentemente, trata-se de relações estritamente viscerais com o mundo, deixando de lado todo esforço de descrição (declarada inútil) em proveito de uma intimidade suspeita, aliás apresentada como ilusória, mas que o narrador não imagina que possa evitar de se entregar. A seus olhos, o importante seria mesmo ceder a ela o mais possível, a fim de chegar à consciência de si mesmo”.


       
      A "metaficção" seria em todo caso anti-realista por que a literatura se torna, usarei aqui a expressão de Guattari, autopoiética, ou como Deleuze se expressa, narração cristalina. Não gera o pressuposto de que está falando de um mundo de sentido pré-existente, mas produz sua referencialidade, creio que podemos colocar assim, evitando por ora a polêmica da “referência”.

          Robbe-Grillet o conceitua deliberadamente, no citado manifesto, como o “romance que inventa a si mesmo”, atribuindo-o elogiosamente ao título de Robert Pinget, “Mahu ou o Material”, comentando que “esse titulo já é um programa”.
          Junto a Pinget, Robbe-Grillet referencia Raymond Roussel, Italo Zvevo, Joe Bousquet e Samuel Becket como escritores que admira, cuja estética seria coerente com as propostas programáticas do Novo Romance. 

          Inversamente, estão rechaçadas no manifesto, como já vimos em relação à Sartre e à descrição fenomenológica, também Camus e o realismo. Junto a estes dois escritores, cujas obras Robbe-Grillet analisa com certa minúcia crítica, situa ele Francis Ponge. São exemplos do que o Novo Romance está rejeitando.

        Assim, não há uma forma a priori de situarmos a sua crítica dentro da oposição construída mais recentemente, entre modernismo e pós-modernismo, pois se os primeiros são geralmente associados modernistas, Francis Ponge veio a se tornar um dos raros consensos quanto ao “pós-moderno”.

         Escrevendo na antecedência dessa oposição, Robbe-Grillet procede terminologicamente do mesmo modo que podemos discernir em Cinema II de Gilles Deleuze. Há apenas a oposição entre estética da representação, que subentende uma realidade além de si mesma, objetiva, referenciável, e a estética “moderna” que se cria a si mesma. Deleuze a posiciona, em se tratando de Cinema, desde o “neorealismo italiano”. Robbe-Grillet, como já assinalei, procede uma seleção dos “elementos de uma antologia moderna”, onde se trata do elogio dos autores citados, contra os precedentes criticados.

           Ele está bem ao corrente de que esses criticados não são o realismo como o de Balzac, ou como o dos socialistas contemporâneos. Mas os situa numa tradição a que designa “humanista”.
          Especialmente a crítica de Robbe-Grillet a Camus é interessante, não só pelo seu lado manifesto, mas pelo latente. Com efeito, parece-me registrável que Robbe-Grillet posiciona o protagonista do seu filme, O ano passado em Marienbad, num contraste direto a Camus, autor de O estrangeiro, pois ele referencia o protagonista do seu filme como “o belo estrangeiro” de quem se trataria apenas de forma enganosa, o saber se de fato a jovem reconhece mas finge que não, ou inversamente, esqueceu-se, ou ainda saber se realmente eles se encontraram antes como ele afirma, ou tudo não passa do seu artifício para seduzi-la: 
          
                “É preciso dizer as coisas claramente: essas perguntas não tem sentido algum. O universo no qual se desenrola todo o filme é, de maneira característica, o de um presente eterno que torna impossível qualquer recurso à memória”.

           
             É interessante notar que Manuel Costa Pinto, no prefácio a uma edição recente de Camus (ed.Saraiva), tenha proposto que "O estrangeiro" trata de um novo tipo de heroi, ou de anti-heroi, que “antecipa em duas décadas o nouveau roman de Alain Robbe Grillet e Claude Simon”.
           Atribui a estes enredos restritos a “descrição fenomenológica das coisas e ações que rejeitam determinações sociais ou explicações de ordem psicológica”. Costa Pinto não referencia o texto do manifesto do Novo Romance.
           Quanto ao aspecto que interessa-me sobremaneira – posto ser estatuto ambíguo precisamente uma objetividade construída a partir da descrição conceituada pura como programa do Novo Romance  – vemos que Robbe-Grillet não rejeita totalmente a psicologia. Ele fala assim das objeções que lhe fizeram a proposito do seu pouco realismo em O ano passado em Marienbad, A imortal ou no Dans le labyrinthe.
               Especialmente quanto ao primeiro, redargue que o hotel e o marido ciumento – que lhe dizem ser ambos inverossímeis - podem ser situados num plano realista, como ele mesmo por vezes é tentado a situar; “e falo da existência subjetiva desse hotel, ou da verdade psicológica direta (portanto não conforme à análise) desse marido inquieto, fascinado pelo comportamento suspeito (ou demasiado natural) de sua mulher”.
            Ser defensável nesse plano realista não lhe é desinteressante, mas de fato, não é aí que reside sua intenção: “eu não transcrevo, eu construo”.
           A descrição realista pode ser pulada, o que importa é o que acontece aos personagens, e habitualmente se faz isso. A descrição pura, não pode ser pulada – pois, ao assim fazer, descobre-se que todo o romance do mesmo modo o foi. O que o Nouveau Roman visa não é ao “realismo”, mas à “realidade”.
             Nesse ponto Robbe-Grillet abandona o critério realista do “verossímil” e do “conforme ao tipo” em prol do estatuto do “falso”, nominalmente o mesmo utilizado em Deleuze (Cinema II) – o que situa a meu ver a ficção pura antes que uma problemática da metaficção.
          Pois, enquanto cristalina ou autopoiética, trata-se apenas de que o objeto está aí para um sujeito, e a situação é completa em si mesma. Se começo relatando que ontem, ao olhar a chuva, percebi que as gotas eram douradas, e que abstendo-me de compreender, apenas deixei-me extasiar, estamos numa ficção pura.
        Mas se após o relato de que vi as gotas douradas, me dirijo a alguém - ao leitor ou a mim mesma- e transijo a um nível questionante da construção linguística, comentando: pode ser que isso devesse ser explicado. Pode ser que ninguém acreditasse. Eu deveria provar o que vi? Mas como o faria, se só disponho de palavras...  Então seria metaficção, mas é justamente o que não ocorre nesse plano da objetividade "cristalina" ou do Novo Romance que, inclusive, geralmente não trata distorções perceptivas senão contextualizando-as em situações bem precisas, não como produtos consideráveis fantasiosos pelos critérios da objetividade "moderno-ocidental".
           Além disso, há desde Lacan uma conceituada recusa da metalinguagem, a partir da inserção do significante como  ausência do significado transcendental. Se não há um plano além do signo, não há um nível "meta" de situamento discursivo qualquer.
           Robbe-Grillet conceitua uma nova espécie de “narrador-personagem” que “inventa as coisas ao seu redor e que vê as coisas que inventa” ao invés de “descrever as coisas que vê”.
          Por outro lado, antes de rejeitar explicitamente qualquer conexão sua a Camus, Sartre ou Ponge, neste artigo , em 1958, também consta do manifesto o artigo em que, já em 1956,  ele rompia com “a sacrossanta análise psicológica” que desde Mme, de La Fayette teria suprido “a base de toda prosa” na acepção de “um 'bom' romance” como “estudo de uma paixão”.
           E quando se trata daquela rejeição, ela é justificada como portando sobre toda identificação espiritual - textualmente metafórica, analógica - da realidade fenomênica, que pudesse reverter como em Ponge à um antropomorfismo antropológico.
Se “sou só eu quem experimenta a tristeza e a solidão”, não devo emprestá-la por artifícios retóricos à raiz do castanheiro ou aos suspensórios do primo Adolphe, conforme referência explícita ao texto sartriano.
          Esse poderia parecer um a priori fenomenológico, e assim a ambiguidade entre psicologia e objetividade se desfaria – o visto e o visível estão entre sujeito e objeto, a consciência é transcendental a ambos como realidades estanques. Mas assim apelando, esqueceríamos de que esta é a âncora de Sartre para explorar todas as analogias da consciência-mundo. O que com efeito surpreende um pouco, é o contraste que podemos marcar pela leitura de Costa Pinto entre o que parece pertinente à Camus, e o que dele critica Robbe-Grillet.
           Para Costa Pìnto, com o anti-heroi camusiano “estamos diante de uma consciência esvaziada, estranha (ou estrangeira) a tudo, que vive no tempo presente e na recusa de estabelecer nexos entre a gratuidade dos fatos”. Inversamente, conforme Robbe-Grillet, “todos os leitores observaram que o herói de O Estrangeiro mantinha com o mundo uma convivência obscura, feita de rancor e de fascinação”. É a impossibilidade de no texto camusiano, assim como de Sartre ou Ponge, de alguém não pensar “com as coisas”, em vez de tão somente “sobre elas”, o que Robbe-Grillet está criticando.
            Uma vontade é o que nos parece estar lutando por afirmar-se quando se trata de antepor a descrição pura, a todas as formas de interligar a experiência dos fatos como experiência de um sujeito. Mas não como a vontade “de”, e sim como transposição a esse plano da afirmação pura – como da pura ordem da linguagem – que seria então o da vontade, daquilo que antes pertencia à conexão de linguagem e intelecção.
           O belo estrangeiro triunfa sobre o quê – senão sobre a significação disposta noeticamente, do marido? E de que modo o faz, se não apenas pela constante reiteração da palavra que resume uma realidade possível - a de que houve, num ano passado, um encontro entre ele e a mulher que está tentando seduzir no presente, a qual parece nada saber sobre isso até que, seduzida, se deixa ir com o belo estrangeiro como se houvesse realmente existido o encontro?
         Como num corte bachelardiano, o possível precede o Real. Robbe-Grillet parece censurar Sartre por não ter tirado as consequências todas do seu próprio axioma segundo o qual a existência precede a essência. Mas de fato ele se expressa mais como numa anteposição da forma ao conteúdo – o que referencia um tanto contraditoriamente pela anteposição de por um lado, a superfície e o vazio, frente a por outro lado a profundidade dos romances da consciência fenomenológica ou do vivido.
           Afinal, toda disposição noetica da materialidade corresponde antes não a uma reflexividade de seu ser idêntico, mas à posição de uma vontade em relação a que as coisas se impõe como elas são.
             Perante as hesitações perceptivas causadas pelo jogo do movimento do corpo de Adolphe e das condições de captação das cores dos suspensórios, pelo narrador sartriano de A Náusea, Robbe-Grillet desabafa: “E o leitor continuará a ignorar a forma que eles tem”. Ou seja, os suspensórios ou a raiz do castanheiro “nunca serão eles mesmos e nada mais que eles mesmos” – como o próprio Roquentim reconhece.
            Essa vontade é expressa como a de uma comunicação impossível a um Outro cuja outridade se comunica por sua vez, somente como de uma vontade de Saber sobre nós mesmos: “o futuro arqueólogo” que “procurasse descobrir” o que são os objetos banais do nosso uso cotidiano, exatamente como num quadro de Spoerri, integrante do "novo realismo".
           A “separação entre o homem e as coisas”, de que Camus não era capaz, conforme Robbe-Grillet, na verdade coloca apenas a ambiguidade dessa vontade de que as coisas permaneçam na exterioridade e na independência – na superfície - contudo para ela mesma, enquanto vontade determinada pela captação dessas coisas inalienáveis de si mesmas.
            A voz média, que Barthes utilizou a propósito do texto de Robbe-Grillet, independe da intersubjetividade e a ação de enunciar-se é somente, ao mesmo tempo, a de dizer/escrever intransitivamente "eu": "estou sozinho aqui e agora".
             Mas essa inscrição os formalismos propõem, a meu ver, num paralelo assinalável à objetividade do significante. Ela se destina, como objeto, enquanto que, como ação, ela é a inscrição pura do desejo. O anti-humanismo, Robbe-Grillet recusa rotular como “absurdo” como o faz Camus, e recusa também que tenha sido autêntico na retórica sartriana.
            A crítica de Robbe-Grillet é que, inversamente a uma recusa da comunicação fantasiosa entre fatos e pessoas, dever-ser e sentimentos subjetivos, o texto de Meursault -  o personagem-narrador de Camus - é construído metaforicamente, tanto quanto o de Sartre. 
           A fusão do objetivo e do subjetivo que literariamente é para ele o que traduz o mal da metáfora por que sempre se pode reduzir ao meramente subjetivo – isto é, a um sujeito fantasiado como tal, não correspondendo ao sujeito real que está em meio às coisas como elas são – corresponde à “sistemática tragificação do universo” de que por seu lado se exime e contra que se coloca juntamente com Barthes.
          Se tudo fosse absurdo como na afirmação de Camus, haveria um diagnóstico totalizante possível, mas é isso que estava sendo negado desde o princípio. Portanto, conforme argumenta Robbe-Grillet, a ausência da totalidade não pode ser ela mesma um diagnóstico totalizante como de alguma “condição humana”. 
           Sobre a metáfora, é em que me parece  Derrida não estar assim tão distante de Lacan, que se instalou a metáfora e a metonímia no inconsciente, foi apenas por desqualificá-las como figuras retóricas. Elas seriam apenas conceitos psicanalíticos para a condensação e o deslocamento operado pelo significante na linguagem inconsciente. Contrariamente à escola inglesa (Klein; Jones), de quem se acreditava um desenvolvimento ulterior, Lacan argumentou que o falo não é simbolizado, ele é o que simboliza (algoritmo significante).
           Derrida se opõe à terminologia da polissemia como generalização de qualquer figura retórica, porque então se trataria de subentender um significado primeiro existente por si. Em vez disso, há apenas o trânsito do significante ("disseminação"). Creio que essa é uma colocação importante, mas na verdade deixa o problema de como lidar com operações significantes que dependem, para seu efeito, de que saibamos que está havendo uma substituição do uso corrente de um termo?
        Nessa minha objeção, não se trata de alguma necessidade fundamental da linguagem. Ao voltar-se a Aristóteles para reconstituir a cena originária do suplemento metafórico, Derrida instaura uma centralidade da metáfora platônica do Sol – que de algum modo seria relevada - numa figura hegeliana avant la lettre – pela analogia (=metáfora) do ser em Aristóteles.
         Como se sabe, a analogia do ser é a tese pela qual Aristóteles afirmou, contra os sofistas, que nós podemos distinguir o circunstancial e o essencial de alguma coisa, na predicação, não obstante dizermos o circunstancial analogicamente ao modo como dizemos o essencial. Tanto afirmamos que u m homem é animal racional, quanto que ele é branco ou negro, magro ou gordo. Derrida estendeu uma comunidade dessa tese metafísica, à tese poética de Aristóteles, pela qual se trataria nos produtos literários apenas de atos de fala - diversamente da linguagem situada do cotidiano.
            Ora, Aristóteles não diz que se trata de atos de fala, mas sim de um modo de mímesis obtido por "metrificação" da palavra. O crucial na Poética, não é a metáfora, mas a metrificação em relação a um conteúdo textual como estória (epos/drama) em função dos critérios de necessário e verossímil.
        Mas, inversamente a tudo o que poderíamos deduzir a partir daí, esses critérios servem a Aristóteles para opor a poesia e a história dos historiadores, somente a esta definindo como algo que acontece a um sujeito determinado, por exemplo, a Alcibíades. Nesse estatuto, a história é algo de menos sério e filosófico que a poesia, segundo Aristóteles.
         Além disso, a metafísica aristotélica não distingue o acidental e o essencial apenas em função da facticidade do ser como daquilo que essencialmente é algo. Nada pode ser factualmente algo sem estar integrando uma necessidade cósmico-religiosa. O aparente ser factual não assim integrável, o apenas fortuito, não é mais que um devir oposto ao estatuto ontológico.
        As dificuldades de se entender hoje a Poética e a Metafísica de Aristóteles, desenvolvo numa publicação recente ("Filosofia, ceticismo e religião", ed. Quártica). 
        Quanto à metáfora não retórica do inconsciente lacaniano,  é o que implica a ruptura de toda representação finita como o que está limitado à consciência e à sensibilidade física, por onde a linguagem do processo primário inconsciente não é delimitável como aquilo que desse processo resulta em termos do uso da linguagem em nível consciente ou, digamos, intersubjetivo, do sujeito inteligente da objetividade. Assim a crítica derridiana da metáfora retórica é em todo caso uma recusa da Poética aristotélica.
          Torna-se claro que a premissa do Novo Romance – que pratica a mesma recusa – ser uma pesquisa, não uma teoria, não é apenas empréstimo do que se disse sobre o evolucionismo em biologia, contra os criacionistas. A objetividade, desde o inconsciente estruturalista, se tornou a questão do desejo, do inconsciente, não da percepção física ou da consciência de mundo. Se a prosa constrói, ela se torna o laboratório em que devem se tornar visíveis os processos da construção a partir, da realidade dada como tal do construído. Esta se torna o fiador da pesquisa como autêntica. O reverso de sua normalidade fiadora seria apenas o sintoma, que não é ao acaso .


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    02/11/2012

        
           É interessante que o prêmio Nobel do Novo Romance, Claude Simon, seja de 1985, portanto dez anos após o sucesso de Ragtime, o consensualmente pós-moderno romance de Doctorow que desfrutou do status de best-seller – enquanto, como registrei, há hesitação de alguns em considerar o Novo Romance pós-moderno. Não tive informação de alguma ruptura de Simon em relação ao Novo Romance, também chamado “escola do olhar” (“école du regard”), antes do recebimento do prêmio.
           O trecho selecionado da justificativa de sua escolha, citado na orelha da tradução brasileira de A batalha de farsália (ed. Nova Fronteira), registro aqui: “Seus romances, ao apresentarem a condição humana, combinam a criatividade do poeta e do pintor com uma profunda consciência do tempo.











































            Tratando-se da “objetividade”,  entre a poesia e a pintura,  também Jorge Enrique Adoum ("O realismo de outra realidade")assinala como atributo adequado ao “inventário exaustivo do visível” que seria próprio do nouveau roman.

            Mas como vimos, se Robbe-Grillet opõe "realismo" e "realidade", pode ser que A batalha de Farsália se mostre exemplar de que de fato a ambiguidade entre o subjetivo e o objetivo não pode ser desfeita quando se trata do Novo Romance porque o plano em que ele se instala não é o do Real, e sim o do "discurso" - como Lacan designaria o simbólico, a linguagem como tudo o que é posto pela coação da linearidade do significante. O simbólico
é uma relação posta com o imaginário desde o inconsciente.
          Nessa terminologia lacaniana, a auto-concepção
do corpo como entidade única agindo num meio é “simbólico” – não “real” - e está numa relação com algo extremamente variável que é o “imaginário”. Este se situa no meio não-unificável para-si que é o das sensações e das experiências corporais que de fato são dispersas.
           A criança humana só chega a formar uma auto-concepção do corpo como entidade única, em função da singularização de si mesma como ego, por volta dos três anos, e sempre de algum modo as nossas experiências físicas são independentes da unidade, abrangendo as fantasias e o senso-comum, ou seja, envolvendo ainda toda a multiplicidade das culturas e das irredutibilidades das fases formativas do sujeito. O simbólico ou lei da linguagem, é formado pelos acontecimentos relativos ao seu relacionamento com o pai.
          A ciência, que pretensamente lidaria com o Real, está do mesmo modo limitada ao simbólico. É no Real que tudo está, obviamente, mas não temos acesso direto a qualquer conceito de Real, isto é, um conceito além da cisão do Je (simbólico) e do Moi (imaginário). Algo é histórico – se tornado factual – e assim afirmamos que é Real, mas tudo o que pudermos dizer está apenas em um ponto de vista situado (“simbólico” = “estruturado como uma linguagem”).
          A formação do inconsciente implica que pelo meio da infância, nós temos a experiência acabrunhante da diferença sexual dos pais - o fato da mãe não ter falo. Essa experiência é a culminância do processo, a partir de que o inconsciente e o consciente se separam, como é caracteristico do adulto, mas não da criança. A partir daqui, após o interregno entre o resto da infância e o início da adolescência, a pessoa está sexualizada, forma-se uma personalidade do gênero, como homem ou mulher.
          Isso implica que houve um mecanismo pelo qual o inconsciente pode continuar ignorando a diferença, para evitar a fragmentação do sujeito. A diferença doravante, vai ser algo apreensível, mas somente em nível da consciência, e mesmo assim, transitando limitada a formas de relação dos opostos. Não há normalidade para uma diferença não relativa, absoluta, na experiência humana. Experiências traumáticas nesse sentido levariam à perda do simbólico, à psicose ("loucura").
           A cisão do inconsciente ocorre no momento da "castração", em que defrontamos na infância a diferença do sexo da mãe, O que ocorre é que o desejo da ausência de diferença é formalizado satisfeito como inconsciente: ao nível do funcionamento linguístico em nível fonético, a junção das partículas da linguagem se tornam o lugar do gozo que tecnicamente é ausência de diferença.
         Em nivel inconsciente, que é o polo de atração do desejo consciente, a mãe continua dotada de falo, não há vazio ou diferença, o significante ("um", a letra que trocada incessantemente na linearidade da fala ou leitura, seria sempre a mesma realidade para o inconsciente) é essa realidade única indeslocável, por isso Lacan afirma que o inconsciente é Outro ou discurso do Outro - a absolutez do significante. O mecanismo implica que o inconsciente pode continuar ignorando a diferença sexual dos pais.
           O vazio entre os fonemas é transposto incessantemente na linguagem, então no inconsciente o vazio (outro) não existe.  Forçado pela castração, o inconsciente transita a um funcionamento na base dessa perda do objeto  (limitação à junção significante-fonemática), por onde o inconsciente libera a articulação consciente como realidade que para ele se torna ignorada.
          A criança, não assim ainda, está restrita ao objeto parcial, não tem diferenciação total das palavras e das coisas que só tem lugar pelo funcionamento na base do objeto perdido em prol do significado como puro efeito do significante.
        O que na experiência consciente implica cobrir a diferença, é prazeiroso, angustiante pelo contrário, é o confronto da alteridade não relativizada por alguma forma de junção. Mas nós formamos assim a nossa mobilidade de enunciação do eu - compreendemos que somos, para os nossos interlocutores, um "você". Esse jogo da linguagem é prazeiroso, e é mesmo somente nele que o gozo da eliminação da diferença ocorre e que todo gozo humano, inclusive sexual,  pode ocorrer.
         O apaixonamento adulto é o caso quando o objeto perdido se torna o próprio "si" do sujeito. O funcionamento da cisão inconsciente-consciente se desloca da normalidade em que implica o investimento identitário do sujeito ("eu"/Je), para se tornar identificação com o sujeito amado. Na fórmula lacaniana, o gozo sexual é perda de si, assim como o amor é amor por outrem que não a si mesmo.
        O amor é o requisito  dessa alteridade do amado, mas se não há maturidade psíquica, o regime do objeto parcial limita todo investimento ao narcisismo da pessoa consigo mesma - pensa que ama outrem, mas usa esse outrem para identificar-se somente a si mesmo, como o ciumento narrador proustiano, segundo Lacan.
          O jogo da linguagem consiste, portanto, em um conteúdo a ser imaginado, que está sempre escapando do seu ser próprio de significante (signo, letra) deslizante,  mas esse conteúdo só pode ser imaginado normalmente enquanto continuar podendo ser fantasiado por nós que o significante (significado) não desliza, que está fixado e que controlamos todo o seu movimento possível.
          Assim, com relação ao que vimos, o Novo Romance opõe realismo e realidade, ao mesmo tempo em que problematiza a oposição tradicional em teoria literária, entre romance psicológico e objetivo, na medida em que ele não lida senão com o jogo da linguagem.  Essa oposição conceituada em teoria da literatura, se torna importante conhecer, especialmente se queremos entender os procedimentos de inovação da "escola do olhar".
            Robbe-Grillet marca o contraste de suas concepções em relação a Camus assim como recusa explicitamente barthesiana do  drama, do  absurdo, do desespero, porquanto tudo isso seria “condição” humana numa acepção realista, suposta a priori e universal, que é a que se está  dizendo “pois bem, não”. A clivagem da linguagem, enquanto jogo de semelhanças e diferenças relativas, imaginário e simbólico, é para onde toda instalação do sentido se desloca.
            E do mesmo modo, ele diz não ao pressuposto do realismo socialista de que “a fábrica e a favela seriam assim, por natureza, mais realistas que a ociosoidade ou o luxo, ou a adversidade mais realista que a felicidade”.
          Conforme Robbe-Grillet, o realismo socialista tem uma “repugnância absoluta”, característica, pelo “adultério e pelos desvios sexuais”. O realismo recalca pois, sintomaticamente, a explicitação do desejo, o locus em que no entanto seria preciso reestabelecer as problemáticas do Sujeito, como as únicas dotadas de sentido intrínseco em termos de discurso, sendo que é a essas problemáticas que se reduzem causalmente todos os conflitos (preconceitos, exploração, etc.) gerados pela condição inconsciente e necessária  de logro da diferença, isto é, os humanos (psicológicos, políticos, interpessoais, sociais) são conflitos do estabelecimento do possível lugar do outro na experiência consciente. 
          Os problemas humanos são relativos à função do gozo, e na medida em que não puderem ser assim definidos e analisados, significa que a censura que precipita o problema é a mesma que está atuando como discurso (preconceituoso, conservantista, etc.) a impossibilitação da sua resolução. Por outro lado, nenhum de nós é totalmente "livre". É em relação ao simbólico, agora na acepção das leis já atuantes em campos sociais discursivizados, que desenvolvemos variamente nossos investimentos desejantes - essa premissa hegeliana em Lacan é um dos motivos da polêmica pós-estrutural não-psicanalítica,que espero conceituar mais à frente.
        Em A batalha de Farsália o tempo não é pré-estruturado, mas imanente à Cena. Esta é variável extremamente, como num desfile onírico, em que não há pré-ordenação do visível. Não constatei qualquer coisa que nos impeça pensar tratar-se de conteúdos que a recepção julgue estarem sendo rememorados,

junto a outros modos de elucubração, como cogitações, associações, imaginação subjetiva.  Não há linearidade temporal e as experiências saltam conforme a memória/texto incide tematicamente de modo alheatório. Elas são efetivamente compostas de descrições objetivas, mas há uma ênfase na materialidade do signo.

            Não ocorre pontuação tal como vírgulas, dois pontos, etc., se bem que haja parágrafos. Há uso de figuras substitutivas das palavras “camisa” e “calças” - objetos da declaração em primeira pessoa, do desejo de se os ter, tecida sobre a cogitação sobre

a recorrente situação de alguém que deve comprá-los mas não sabe dizer essas palavras. As figuras emergem após algumas recorrências de sugestões sobre como contornar a dificuldade. Nesse caso a dificuldade é encenada como sendo vivida por um “você”, mas quando a substituição ocorre, trata-se da enunciação do desejo de um “eu”.
            Há ainda figuras que também substituem, como significantes, a palavra. São figuras de um dedo que aponta à frente e de setas, indicando em todo caso a linearidade em que se deve continuar, do traçado significante da leitura. Mas ao longo da leitura, o desaparecimento de coisas vistas é recorrentemente tematizado tanto mais associado à ordem da cena tal que envolvidos pela descrição, certamente esquecemos o significante.
Algumas cenas são, porém, recorrentes, volta-se constantemente a elas, e como que continuam no ponto em que haviam parado, a cada volta.
         Não há o que impeça supor que são recordações – junto a outros modos de elucubrações – do personagem-narrador que está viajando de automóvel com um companheiro chamado Nikos, na Grécia. Ele está pensando nelas enquanto a viagem transcorre, e os objetos descritos ora são os pensados, ora são os presentes relativos à viagem que está ocorrendo enquanto o sujeito pensa.
      Uma experiência subjetiva se depreende, a meu ver,  se bem que alguns interpretem como sendo experiências de vários sujeitos, sem pressupor a linearidade da viagem.
       Em todo caso, cenas são assim apresentadas: um menino está aprendendo uma lição ao mesmo tempo de latim, grego e história antiga – há recordações do menino, de seu medo de apanhar, mas a punição sendo somente imaginada na angústia do menino apreensivo, não chegando a ocorrer.
           Isso se contrasta, a meu ver, à cena da surra que chega a ocorrer, do menino Camus ("O primeiro homem"), sendo ambos o mesmo motivo – o chegar tarde em casa.
          Em A batalha de Farsália, esse menino (ou outro), junto com mais um personagem masculino, vivem uma experiência homossexual.
           Um homem - a meu ver, o narrador que se recorda -  e uma mulher estão em intercurso sexual,  e serão interrompidos por alguém que bate a porta querendo saber o que está ocorrendo no interior do quarto (o que coloca a engraçada aporia da resposta), reprovando ainda o homem por sua conduta assim julgada escandalosa – de que resulta um humorístico trocadilho, pois lhe perguntam também, indignados porque o homem não pode “dormir com ela, como todo mundo” - aparentemente, não de modo escandaloso, mas na verdade a frase soando como se todo mundo dormisse com ela de um certo modo definido;as cenas do intercurso são explicitamente descritas; alguém está recorrentemente emergindo de uma estação do metrô; alguém está presenciando uma cena recorrente de jovens reunidos num bar ; e como assinalei, há as cenas ligadas ao acontecimento de dois homens viajando na Grécia, como turistas, mas sua tour é voluntariamente orientada pelo desejo de ver os lugares e monumentos históricos ligados ao acontecimento histórico-antigo de Farsália.
        Eesse elemento me parece bem pós-moderno a partir da leitura de Hutcheon, ainda que ela não considere assim o Novo Romance. Com efeito, ela privilegia as experiências em que um pré-texto histórico, como o da guerra de Troia, anima uma empresa literária de reconstituição a partir do deslocamento de quem o vivencia, uma vez que a vivência da experiência história está duplicada, não é o referente que apreendemos como o herói do acontecimento, sem ser também a experiência da nossa lição de sua apreensão, de nossa identificação subjetiva com esse herói – como o Cassandra de Christa Wolf.
          Assim, em A batalha de Farsália, não me parece que a cena recorrente da viagem seja estruturalmente a mesma coisa que as outras. É em torno da viagem na Grécia atual, em busca dos monumentos históricos da batalha na Grécia antiga, e dos episódios dessa viagem, que uma linearidade da leitura é reconstituível, pois a viagem é orientada, e sua orientação confunde-se com a lição originária da infância. Além disso, a atualidade da Grécia é que mapeia – como o traçado algorítmico – o split público-privado, funcionando como o limite aquém do qual estão o Sujeito e suas experiências das coisas e das situações, além do qual estando a sociedade.
        Ora, as coisas e as situações são a tessitura dessa sociedade enquanto bem concretamente situadas. Reconhecemos o traçado da indústria e da cultura midiática por toda parte – na cena do bar, no metrô, nesse outro tipo de monumento que povoa a viagem na Grécia, que são as marcas da atualidade, os postos de gasolina, os anúncios que reproduzem as marcas das multinacionais que o texto grafa em letras maiores (Schell/ Singer).
         A premissa pop da colagem, deveríamos lembrar, é um neodadaísmo já habitualmente conceituado em artes plásticas, como em Rauschenberg e Lichtenstein. Quanto ao literário podemos afirmar o mesmo,  na medida em que o programático de Tzara consistia numa montagem do sujeito a partir desse mesmo pré-texto industrial, ainda que limitado à sua metonímia de época, o jornal. Recortando palavras a esmo, sorteando-as depois e colando-as num papel, o “poema” resultante parecerá conosco, isto é, o poema parecerá com aquele que recorta e cola. Intromistura que é precisamente o pré-requisito de um Sujeito – contanto que o conceito seja o de um sujeito Qualquer - conforme a expressão de Lacan ("Controvérsia estruturalista").
        É somente a história de nossas colagens e descolagens que nos singulariza em relação aos outros sujeitos, iguais a nós enquanto também processos e por isso mesmo, irredutíveis a nós enquanto realidades constitutivas dos seus processos. O limite do privado não pode ser franqueado. O nível público na sociedade democrática contemporânea existe para que essa inviolabilidade do sujeito particular seja juridicamente garantida.
       E também a viagem na Grécia é uma orientação que vai desfazendo a inevitabilidade de uma intenção declarada como que desde uma interioridade substancial, porque os monumentos – velhos e novos – vão tendendo a se configurarem por um jogo concretista também recorrente, composto por palavras gregas de letreiros que se agrupam como em poemas dispersos ao longo do percurso, a partir da marcação de cada estação percorrida/encontrada. Os monumentos não são o correlato intencional de uma consciência fenomenológica pura, portanto.
         Com efeito, a busca desses monumentos antigos, em meio à realidade das placas, anúncios e edifícios como monumentos modernos, se permeia evenemencialmente pela desorientação dos dois homens em viagem, um deles o personagem-narrador que não fala o grego moderno, pelo fiat da recorrente indagação a esses gregos de hoje sobre onde ficam os monumentos antigos.
        O corte entre gregos antigo e moderno é tão nítido quanto a recorrência da vontade de desistir, repetida constantemente diante das dificuldades de obter resposta ou traduzir, por parte do personagem narrador que a todo momento está pensando que isso / a viagem / “não leva a nada”.
            Circunscrito ao split (privado) em que se constitui, o discurso de fato está mapeado por esse dois enunciados limite. O sujeito é como todo mundo – singular mas só enquanto referente de certos atos – por um lado, mas não é nada, por outro. Ele “sofre como” - não há complemento possível, ou então o complemento seria metáfora, retórica, idealismo.
          Ora, o puramente sensível ou corpóreo não está nas coisas, inversamente aos princípios fenomenológicos, posto não ser discurso e sim Real, ainda que pertença ao ato da pertença (o sexo). Essa recusa da metáfora sendo o básico do que vimos no manifesto de Robbe-Grillet.
          Em Claude Simon, a expressão recorrente "eu sofria como", não atrai o complemento nominal, também posto que o decurso da experiência é a ausência de si, a relação sexual é claramente subjetivada - ele se expressa como alguém efetivamente apaixonado pela parceira.
           É notável como uma trajetória do sécuo XX estético pode ser reconstituída a partir do dadaísmo. Inicialmente, foi a impulsão das vanguardas - por exemplo, inspirando decisivamente Breton e o nascente surrealismo. Depois, se tornou estigmatizado por Breton, que se separa dos dadaístas, com o surrealismo realmente se tornando o movimento importante da metade do século. Com o Pop, fala-se de um outro dadaísmo, de um novo dadá, e como vimos, com validez. Paralelamente, ocorre uma desvalorização do surrealismo como entendimento do incosnciente, posto que não lacaniano, ainda ligado às interpretações ortodoxas de Freud.
           O pronunciamento que destaquei, de Jorge Enrique a propósito do Novo Romance, é importante tornar a se referenciar. O artigo citado tematiza como conceituável em termos de uma problematização inerente ao realismo, vários aspectos da prosa contemporânea, sendo que seu foco é a prosa contemporânea americano-latina. Antes do exame desse artigo, conjuntamente ao de Ramon Xirau ( "Crise do realismo") cujo foco é o mesmo, creio ser oportuno retomar algo da problemática camusiana em literatura, posto que ela é  relacionada a esse tema literário do terceiro mundo - lembrando que se trata em Camus, de uma problemática explicitada das suas origens argelinas.

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                                                                       4/11/2012

  II ) As questões da Memória
           
             Como vimos em Hutcheon e Dalma Nascimento, a memória não é o investimento próprio do sujeito, mas do ex-cêntrico. Podemos afirmar assim que ele se constitui por um "pré-requisito de alteridade", mas inversamente ao que Lacan parece ter querido expressar, não por se produzir como posição singularizante de um Si no discurso, e sim por vir de uma "outra realidade", em função de que a sua é uma experiência - estória - de marginalização.
           Alteridade que lhe pré-existe, portanto, mas que ele não tem pré-conceituada, ainda que paradoxalmente, seja a pré-existência do que desloca de si a posição da fala por uma posição que é a do preconceito.
           A memória se opõe ao que habitualmente se designa fluxo de consciência, em princípio joyceano e que vimos investido na "escola do olhar" como sendo o lugar próprio do "discurso" - aqui a conservação do termo "consciência" é irônico.
          Não tendo  de sua marginalização um conceito senão estruturante do preconceito, é investindo a estória - ou o vivido estritamente dos acontecimentos -  por meio de uma disciplina da rememoração que recalca toda variação do pensamento, que se poderia desenvolver uma estratégia para produzir uma compreensão ou um conceito do que a marginalização significa.
          Contudo, se a literatura camusiana é um locus indubitável da temática da marginalização, por outro lado um investimento que constatamos incoativo ao "discurso", vai-se descobrir que em vez de poder ser incluída numa vertente do memorialismo o que ela coloca é uma problematização da memória, a partir de uma sua recusa explícita - não meramente implícita por um seu outro fazer. Mas inversamente a esse plano manifesto, a memória poderia, sim, ser visada como o plano latente da instalação dessa literatura.
           Esse é precisamente o mesmo desenvolvimento que encontramos quando, na produção americano-latina contemporânea, se focalizou em alguns aportes teóricos a temática da problematização do Realismo, como em Xirau e Jorge Enrique. 
            
          

                O título do prefácio de Costa Pinto ao volume de “O primeiro homem”, de Camus,  é “Uma ficção autobiográfica sobre a impossibilidade da memória”. Mas tal impossibilidade da narrativa, ou do gênero, não é conceituada ao longo dessa exposição introdutória que, inversamente, se demarca pela estranheza do “tom memorialístico” que nessa prosa camusiana seria “inequívoco”, em relação aos demais textos do escritor.
             Mas aqui deveríamos notar que se "O primeiro homem" é manifestamente uma autobiografia, os outros textos de Camus não são totalmente distanciados da motivação memorialística.
 "O Estrangeiro" parece ter sido motivado pelo fato do pai de Camus ter voluntariamente assistido à execução de um condendo à guilhotina, circunstância que nos é revelada não só pelos biógrafos, mas pelo que consta em "O primeiro homem".
          No prefácio de Costa Pinto,  somente se torna à evocação da aludida impossibilidade da construção do gênero em Camus quando, no fechamento do prefácio, ele trata a obra em termos de “um antiépico, um romance que se apropria do fluxo temporal de Proust (e em muitos momentos Camus constrói frases transcontinentais à maneira do autor de Em busca do tempo perdido) para compor essa ficção autobiográfica permeada pela impossibilidade da memória”.
           Mas então segue-se a citação como epigráfica, em que Camus se posiciona radicalmente oposto a Proust: “Só os ricos podem reencontrar o tempo perdido.” A impossibilidade da memória é somente a dos pobres, pois “já é por natureza menos alimentada que a dos ricos, tem menos pontos de referência no espaço, considerando que eles raramente saem do lugar onde vivem, e tem também menos pontos de referência no tempo de uma vida uniforme e sem cor.” Para os pobres, inversamente aos ricos, “o tempo marca apenas os vagos vestígios do caminho da morte”.
          Essa é na verdade uma oposição singular quanto ao situamento das classes dentro da problemática da memória. Vemos por exemplo no estudo de M. Consuelo Cunha Campos ("Cânon, etnias e gênero - uma perspectiva comparada afroamericana e afrobrasileira") sobre Harriet Jacobs, autora norte-americana de uma autobiografia intigulada Incidents in the life of a slave gilr, escrito anteriormente à guerra da Secessão, um estatuto extremamente positivo da memória conexo ao situamento oprimido de classe.
          Conforme Cunha Campos, "apropriar-se da linguagem escrita será, para a autora, de vital imporância política, por ensejar a passagem do vivido ao narrado e da esfera privada para a pública."
            Nesse ponto ela  associa a narrativa memorialística, autobiográfica, a uma processo de constituição de si, como em Virginia Wolf, e esse aspecto escapa à demarcação que estabeleci inicialmente, entre estória (ex-cêntrico) e discurso (sujeito), mas o artigo em geral está mais dentro dessa perspectiva referenciada. Assim, falando sobre os estudos de gênero (feminino) e gender (etnia), Cunha Campos nota que nos Eua, a partir do pioneirismo de Jacobs, "Narrando autobiograficamente, essas autoras não querem, tão só, testemunhas as atrocidades da escravidão, mas, ainda, celebrar sua própria resistência a elas através de fugas vitoriosas a duras penas, mostrando-se fortes, corajosas e dignificadas, em contraposição ao tipo de universo degradado em que foram forçadas a viver".
           Aqui fica claro que o Sujeito não se constitui para si senão a partir daquilo que ele reconstitui como "outra realidade", em nível de estória ao invés da singularização do Si no discurso. A intervenção discursiva está a serviço da estória, não o oposto.
          Mas como podemos entender o contraste do encaminhamento de Camus a essa conexão de resistência de classe e memória? Ora, examinando o artigo de Cunha Campos, e aproximando-o ao que se sabe da trajetória da resistência negra ao escravismo e ao racismo, vemos que pautou-se geralmente, da luta abolicionista até a altura dos anos cinquenta do século XX, pelo que se designa "integracionismo" a partir de duas linhas de conciliação - para falar como Hegel - dialética na cultura, o cristianismo e o industrialismo.         
              Essa terminologia hegeliana está traduzida no artigo de Cunha Campos em termos de integração ao Canon, por este termo definindo a cultura oficial e as modalidades do seu cultivo, como a literatura.  Inversamente, Camus e a literatura americano latina confrontam não tanto uma impossibilidade de acesso ao Cânon como de integração a ele, posto que não há linhas de conciliação senão aparentes, como caminhos ao mesmo tempo de extremo recalcamento e exclusão. O mito de Sísifo, caro a Camus, ilustra a meu ver a oposição que Levi-Strauss conceituou da história cíclica da margem à história contínua do Ocidente.
           Assim, a própria Cunha Campos compara a trajetória ascendente  do investimento literário biográfico de Harriet Jakobs nos Eua, no tocante ao que seria a "formação de um cânone afroamericano", com o que vários estudiosos tem levantado a propósito da situação do negro escritor brasileiro, como Carolina de Jesus, Lima Barreto, e referenciais que só agora estão sendo catalogados.
           Enquanto nos Eua trata-se da "ênfase à autobiografia de escravas como reação positiva ao processo de vitimização, como narrativa de vitórias (...)", inversamente "no caso brasileiro predominan pungentes narrativas de fracasso", citando especialmente o triste destino de Lima Barreto, e notando que quanto a Carolina de Jesus, após o surto de seu lançamento ficou  esquecida por aqui, enquanto nos Eua tem sido estudada e comercializada como referencial da realidade do Brasil.
         Não se pretende minimizar os processos de exclusão - por exemplo, as tentativas de falsear a autoria no caso de Harriet Jakobs, por onde circulou-se uma versão de que ela não teria sido a autora real da narrativa, mas uma branca que apenas imaginou a estória em prol da campanha abolicionista, assim como há tentativas de se comprovar que Carolina de Jesus não escreveu "Quarto de despejo" sobre a  miséria da favela paulista, e que apenas ditou para que alguém letrado escrevesse.
          Mas o que estou enfatizando é que aquelas vias de conciliação dialética são interditadas numa porção das nacionalidades onde o cristianismo não obteve contiguidade ao industrialismo, como no terceiro mundo. Por outro lado, desde a metade do século XX até a atualidade, a via "integracionista" está sendo questionada nos Eua, a partir da alternativa assim designada "integracionalista" que muda o cânon negro desde 1968, como a partir das proposta de Amiri Baraka e Larry Neal ("Black Fire"). Não se quer mais apenas provar comum humanidade com o branco, mas recuperar as raízes culturais negras, e em vez de apenas uma literatura norte-americana, introduz-se o conceito paralelo de literatura afroamericana.
          Ragtime de Doctorow tematiza precisamente a ilusão integracionista a partir do contraste das personagens de Coalhouse - pessoalmente estigmatizado - e o líder histórico Booker T. Washington. Mas o livro mostra como a ilusão não chega a ser desfeita, não importa o quanto esteja evidente a defasagem à situação concreta da estigmatização.
         A partir do integracionalismo, porém, já se transitou do locus da memória para o que designei como o do texto. Vimos que o discurso articula o lugar problemático do Sujeito não "realista", enquanto a memória, visando a experiência da marginalização, problematiza também a subjetividade, mas pelo viés, digamos, da identidade em termos do situamento de uma diferença.
         Na imanência do texto, como explicitamente, por exemplo, em Henry Louis Gates que é uma referência do novo locus integracionalista da negritude nos Eua, não há a circunscrição identitária, mas o que se insere problematicamente é também o ex-cêntrico, e se assim sua inserção literária não pode ser o fluxo de consciência em função do descrito, vem contudo a ser a multiplicidade do próprio cânon - a multiplicidade dos textos em que se configura a inteligibilidade posicional da marginalização ou mais amplamente, da diferença, com que somente a experiência do texto atual se coloca interlocutivamente.
        Torna-se paradoxal quando se trata de encontrar, inversamente, uma renovada temática do "realismo" na crítica americano-latina para visar precisamente a virada dessa mesma época, nos anos setenta, em função de uma literatura local que se tornara crítica da universalidade e pesquisadora das raízes índias e negras, como dos processos de marginalização relativas à miscigenação.
         Examinando a literatura camusiana, vemos que ilumina aspectos importantes desse paradoxo a partir de sua inserção problemática no universo argelino, dado que o próprio Camus como europeizado nunca se coloca inteiramente nele, sem poder por outro lado, se deixar crer estar inteiramento no exterior.
      É bem acentuável o contraste biográfico de Camus em relação às duas pontas do dilema colonial, como ressalta Costa Pinto, ainda que para este com isso tenhamos a explicação da impossibilidade da memória – na acepção do ato em si representado como tal, de lembrar.
        O dilema é o que venho explorando aqui, entre a concepção do capitalismo como luta de classes local, isto é, aqueles elementos descritivos selecionados como servientes ao seu embasamento teórico em termos da dominação da burguesia sobre o proletariado, e o que espero ter demonstrado, ou estar demonstrando, como a pressão dos outros elementos que desde a situação colonial e pós-colonial implicam a superação desse paradigma, pelo fato do capitalismo como um processo não intrínseco europeu, nem apenas econômico, mas sendo uma assimetria internacional do capital, implicando a dominação cultural.
           Poderíamos apontar minha contradição entre a superação epistemológica que designei pós-moderna como recusa de paradigma como de toda totalização do objeto, e uma definição exaustiva assim, mas de fato ela não é uma definição tal que permita deduzir/totalizar uma história geral ou um relato reconstituinte da unidade de Si, senão como a meta-instituição do Si egogeológico em geral, ou seja, ela é a explicitação da construção do paradigma em geral e sua epistemologia.
           Na medida em que neocolonialismo e imperialismo implicam a aborção das economias de margem pelo capitalismo que assim inscreve sua assimetria, não há forma de inscrição sem ser a letra que inscreve e o Rastro do seu movimento de incrustação (“embedding”). Então ele não é um fenômeno totalizável como confronto de dois modos de produção definíveis, o capitalista desenvolvido e aquele de que se trata na localidade específica. E sim a produção dessa margem para si.
             Não há luta pela independência, política e/ou econômica conforme a enunciação histórica possível, na margem, que não enfrente esse dilema, até agora, porque a luta não se erige contra uma geoegologia unívoca e sim já splitada no Centro – entre os dois projetos de racionalização-universalização, cujo produto no entanto é o que marginalizam como o não racional ou não universal, a saber, as culturas não-ocidentais ou as singularidades existenciais: o da burguesia e o do marxismo.
        Costa Pinto mostra, a meu ver, que Camus teve dessa dilema consciência clara pelas circunstâncias da situação argelina, mas sua opção não foi de modo explícito, favorável ao nacionalismo cultural. Ele “não tinha a consciência culpada do colonizador”, não compreendia uma irredutibilidade de si à “civilização mediterrânea que ele celebrou nos ensaios de Núpcias e O Verão”. Portanto, enquanto franco-argelino, ele se identificava ao proletário europeu cumprindo as etapas do desenvolvimento intelectual redutor, ainda da semântica do primeiro termo da expressão, “proletário”.
           Escritor celebrado na Europa, que ganhou o prêmio Nobel em 1957, retorna à Argélia, mas para ele não poderia ser algo com que se identificar, porque era ainda a natureza, não a cultura. Nela o que Camus buscava podia ser apenas “a obscuridade e o anonimato” – conforme suas palavras num prefácio a O avesso e o direito, ou seja, a desindentificação, a inconsciência, a perda de si.             Aqui, o tema do esquecimento. O não-europeu (“argelino” ou “africano') é o “primeiro homem”, neste texto explicitado como o selvagem, o primitivo, - o que vive mergulhado na inconsciência, na natureza, no “imenso esquecimento”.
           Entre a indiferença da natureza por um lado, e o problema do mal na história, por outro lado – na verdade, Camus não é assim tão absurdo. O que há de tão momentoso na indiferença ao humano por parte de um céu e um mar tão belos como os da África, tema camusiano recorrente, é que ela não é de fato estranha a um dos dois lados que dividem os homens.
            Parece-me que o obsessivo em Camus é que ele não pode responder se o mal da história se deve à ação consciente do homem (luta de classes), ou a que existe o homem natural, esse que não é de fato indiferente a tudo, mas pelo contrário, “sem qualquer espécie de ressentimento” por que sua “vida presente parecia-lhes a cada dia inesgotável sob a proteção das indiferentes divindades do sol, do mar ou da miséria”, não tem projeto político, racionalidade administrativa ou concepção “da vida futura”.
            Não penso que Camus tenha realmente interligado o “mistério da pobreza” que nele ignifica a consciência da vacuidade do tempo vivido pelo fato da miséria de “uma vida uniforme e sem cor”, e o que Costa Pinto designou o “reencantamento da origem”, como a poética da natureza selvagem, a luz argelina, a inconsciência que nele é a pura estesia.
          Efetivamente Camus encena um contraste marcado entre o que é descolorido e uniforme (pobreza/ “europeu” proletário) e o que é iluminado, celeste e marino (natureza/ “africano” argelino).
           Em O mito de sísifo, constrói um intervalo pendular entre um lado do sem sentido da ocupação de Sísifo, que é o lado da singularidade de si como indivíduo e da naturalidade inconsciente dessa condição singular, e um outro lado da universalidade da “origem humana de tudo o que é humano” por onde a ocupação sem sentido se transforma em destino.
           Aquilo contra que se está é novamente a natureza ou o inconsciente, não obstante ser a estesia que preenche o poético textual, pois se há não obstante esse poético, um “é preciso” do texto, seu correlato é “imaginar Sísifo feliz”, exatamente por ser quem conseguiu transformar o rochedo em destino “criado por ele, unido sob o olhar de sua memória”, ainda que logo isso implique a consciência da finitude.
              A impossibilidade de responder, não de relatar, se deve a que não há vontade de preencher a lacuna cujo correlato só poderia ser um locus de sentido como conceito construído de “colonizado”. Sintomaticamente, Camus não chegou a ver a independência da Argélia. Ele recusava a opção que efetivamente impulsionou esse processo histórico, a de um nacionalismo que não se contentou com apenas se considerar estar copiando a cultura ocidental.
             Podemos notar como a rejeição camusiana de completar o processo do situamento colonial resulta numa limitação dele mesmo enquanto esse si que identificado apenas a um dos lados do dilema, sabe-se lacerado pelo Outro.
           O “homem absurdo” tem realmente, a meu ver, ainda que não diretamente, uma grandeza conceitual que recupera o poético de Camus – a atenção não abstraível, ao local. “... Toda a alegria silenciosa de Sísifo está lá. Seu destino lhe pertence. Seu rochedo é sua coisa. Igualmente o homem absurdo, quando contempla seu tormento, faz calar todos os ídolos”.
          Tais ídolos, como se lê correntemente, corresponderiam à cumplicidade com que se traveste o “absurdo” em discurso de pseudo-sentido – o absurdo traduzindo a problemática histórica, social, cultural, subjetiva, o sofrimento adorniano que a arte autêntica não poderia desconhecer, se ela não se reduz a mais um ídolo ou “indústria cultural”.
          A ambiguidade é o que comunica a positividade da imagem, o que faz a grandeza mesmo de algo tão limitado como a irresolvida oscilação entre a alegria e o tormento, o sem sentido e o destino.
             A ambiguidade que assinalei – o que a prosa não responde. Poder-se-ia argumentar que ela responde, como o que poderíamos ainda mais, interpretar de O estrangeiro. O argumento seria a atribuição – tão verdadeira quanto inverossímil – da causa do ato de Meursault ao sol, não a ele enquanto humano, pensante ou desejante. Não seria que sua confiança inicial em que o processo nem mesmo aconteceria, estava construída em torno da suposta evidência da legítima defesa da própria vida. Aquilo que divide, entre natureza e cultura, estaria na interioridade do homem, como seu mal e seu bem indiscerníveis a princípio, não apenas entre os homens, se civilizados ou não.
             Mas penso que sempre a partilha de mal e bem é feita na prosa camusiana. Toda indiscernibilidade permanece dialeticamente para ser revogada na síntese em que o bem é a civilização e a consciência acima da contaminação pelo mal da natureza, do impensado, do inconsciente. A causa, o engano pelo sol, resultaria em que argumento tal que neutralizaria o ato, senão que uma defesa contra um mero antagonista estava envolvida, o heroísmo dessa defesa, etc..? 
         O que o advogado de defesa não explora, para espanto desse réu que se defronta com a necessidade de explicar  o seu estranho ethos de indiferença, no entanto generalizada – não especificada como portando sobre o estigmatizado colonial que ele assassina.
        Assim também, sobre o pessimismo camusiano, pode-se, com Vergez-Huisman, considerá-lo humanista. Conforme Camus “Pessimista quanto ao destino humano, sou otimista quanto ao homem” que como vimos acima, transforma pela inteligência e pelos valores, o acaso em destino como ato realizado seu. Se trata-se do “homem revoltado”, e se ele age mal devido à natureza e à revolta, esta lhe traz contudo “a lucidez” para que se esforce “por diminuir as injustiças e o sofrimento”, conforme Vergez-Huisman.
           Assim o contraste ao Novo Romance se torna nítido. É a significação do mundo à nossa volta , como a um a priori, que se trata de negar que se esteja propondo. Conforme Robbe-Grillet, “Acreditar que o romancista 'tem alguma coisa' a dizer e que ele a seguir procura como dizê-lo representa o mais grave dos contra-sensos”. Pois, “Antes da obra, nada é conhecido antecipadamente, nenhuma mensagem”. Assim, “o mundo não é nem significante nem absurdo. Ele é, simplesmente.”
           Creio haver intenção deliberada na desconstrução da oposição de memória e presente, em Robbe-Grillet, mas aqui constatamos que aquilo que se entende por descrição não é a apreensão imediata sem ser também a construção da aporia da inexistência de algum vínculo prévio entre tudo o que é descrito. A temporalidade que seria esse vínculo, não está ainda construída antes do texto. Esse intervalo do significante a si mesmo enquanto operação significante é explorado, como por exemplo, falando sobre Roussel: “Enigmas vazios, tempos parados, signos que se recusam a significar, gigantesco crescimento de detalhes minúsculos, textos que se fecham sobre si mesmo, estamos num universo chato e descentrado em que cada objeto só nos remete a ele mesmo”.
           A descrição se arrasta, possivelmente, quando se trata de ainda um outro comentário. E, sobre Zvevo, “o tempo de nossa mente não é mais o dos relógios; e o estilo de um romance, por sua vez, não pode mais ser inocente.
          Sobretudo, a memória se torna o foco de uma proposição bem interessante: “Por que procurar reconstituir o tempo dos relógios numa narrativa que não se preocupa com outra coisa além do tempo humano? Não é mais sábio pensar em nossa própria memória, que não é nunca cronológica?” O atributo recusado de humano generalizado concentra,a meu ver, o enraizamento histórico e cultural da problematização que Robbe-Grillet atribui como o elemento em que se instala o Novo Romance.
        E isso do mesmo modo que já se pode recensear exaustivamente os dogmatismos: “Os clássicos pensavam que a realidade era clássica, os românticos, que ela era romântica, os surrealistas, que ela era supra-real. Claudel pensava que ela era d enatureza divina, Camus pensava que era absurda, os 'engagés' pensam que ela é acima de tudo econômica e que se dirige para o socialismo”. O importante assim é que tudo se iguala na proporção mesma de sua diferença irredutível: “Todos falam do mundo tal como o vêem, mas ninguém o vê do mesmo modo. ”
           O Estrangeiro, de Camus, inversamente à indiferença pela cronologia, é construído a partir do ato trágico como retrospectiva do que lemos no início, a partir da necessidade do Tribunal reconstituir os acontecimentos. Paralelamente, o prisioneiro reconstitui para si o modo como os acontecimentos estão sendo reconstituídos pelo Tribunal, sendo a memória do que aconteceu realmente o seu critério de julgamento sobre o ato próprio e sobre o que faz o Tribunal encarregado, por sua vez, do poder de efetivamente julgar. 
         Conforme Camus, citado por Costa Pinto, o seu processo de composição em O estrangeiro, consistiu em expor,“uma certa concepção de homem que a inteligência se esforça em colocar em evidência em meio a um pequeno número de situações”. A meu ver, poderia ainda assim propor-se um eixo de argumentatividade que tende a coalescer da radicalização a que o personagem-narrador do conto de Camus é levado a partir do que a princípio são apenas suas convicções sobre a evidencia, a objetividade.
       O que é absolutamente singular na personalidade de Meursau  é que essas convicções não estão, pelo próprio modo delas serem diversas das convicções dos cristãos, unidas aos sentimentos, à passionalidade. O dever-ser como convicção não deve comunicar-se ao sentir. O dever-ser puro não é lastreado pela passionalidade, mas pela racionalidade.  Com a evolução dos acontecimentos na trama essa pureza se vê severamente contrastada pelo ethos cristão onde o dever é amor ao próximo, ou fé, ou mostras de sentimentos dominantes de todo o comportamento de uma pessoa.
         Conforme o ethos cristão, se perde-se a mãe, não se vai à praia subsequentemente.Não é uma questão de apenas desincumbir-se das providências necessárias ao caso e em seguida, desembaraçadamente, ir fazer o que se bem entende. Meursau não apenas havia feito isso, mas encontrando na praia uma mulher pela qual estava interessado, Marie, envolve-se imediatamente com ela. 
          O juízo condenatório do tribunal afinal incide sobre esse pecado da indiferença, não objetivamente sobre o crime cometido contra o verdadeiro estrangeiro – o árabe, irmão da moça que havia sido humilhada com a cumplicidade do narrador, e que por estar tentando vingar essa ofensa à irmã foi abatido pelos tiros desse cúmplice, Merseau, amigo de Raymond, o rapaz que concretamente planejou e efetivou a cena humilhante.
             O narrador escreve a carta à pedido de Raymond, a qual atrai a moça à armadilha. O plano acaba mal – pois os gritos dela atraem um policial ao apartamento do rapaz, vizinho do protagonista. Mas não é aí, nesse pequeno escândalo desabonador para Raymond,  pois o policial por sua vez o humilha, que se precipita a “tragédia solar”. É quando o casal de protagonistas, Meursau e Marie,  aceita o convite de Raymond, e na casa de praia onde se alojam, onde o que vemos é então um grupo de jovens reunidos e podemos constatar que essa comunidade com pessoas de sua idade igualmente livres, é o real desejo ou a identificação plena do narrador, acontece o conflito com o árabe que os tinha seguido.
          Na praia, porém, o conflito é minimizado pelo próprio interessado, Raymond. O narrador volta sozinho, depois, à cena da briga, defronta-se com o árabe que ainda estava lá, é cegado pelo brilho do sol que incide sobre a faca do árabe e julgando assim que a faca está avançando sobre si, atira. Crê depois disso que está óbvio que não é culpado, mas pelo contrário, descobre que todos estão contra ele por um motivo que para ele não fará jamais sentido: aquele desprendimento – para ele muito honroso e conforme ao dever – de seus sentimentos em relação à perda da mãe. Julgam afinal que ele não matou o árabe, e sim que reificou o assassinato da própria mãe.
          Depois do seu julgamento, estava para ser julgado um parricida. A comunicação dos dois acontecimentos é explorada incessantemente pela acusação. Lá um parricida, aqui um matricida – eis a juventude de hoje que é preciso corrigir exemplarmente. O juízo condenatório nunca é registrado explicitamente, mas a fórmula da acusação – que afinal, foi adotada, se o resultado foi a condenação à pena capital – consta: “O mesmo homem que no dia seguinte à morte da mãe se entregava à mais vergonhosa devassidão matou por motivos fúteis e para liquidar um inqualificável caso de costumes”.
           O fato de Merseau, o protagonista, ter atirado mais de uma vez parece ter convencido a todos de que ele atirava passionalmente na mãe, de forma inconsciente, em vez de apenas por defesa, friamente, no antagonista em meio a uma luta. O juiz em pessoa insistira nesse ponto. Faz três perguntas em torno disso: se todos os tiros haviam sido seguidos; por que havia um intervalo entre o primeiro e os outros quatro; por que, finalmente, ele havia atirado esses outros quatro, se o corpo já estava caído desde o primeiro.
        Que todo o tempo, desde o encontro com o profissional que lhe destinaram como advogado de defesa até o pronunciamento da sentença, se tratava da indignação ou estupefação por sua frieza é explícito constantemente – descobre-se que todos o conhecem já como o jovem que foi à praia namorar, no dia seguinte ao enterro da mãe. Mas também que de fato ninguém acredita que ele não vá ceder ao sentimento em algum momento – desesperado, voltar-se à fé cristã – ou que não haveria como efetivamente localizar esse sentimento que assim, em vez de inexistente, estaria apenas oculto.             Pode ser que a acusação tenha ganho por ter explorado um filão nesse sentido de contemplar esse desejo de todos os cristãos presentes, inclusive o advogado de defesa. A acusação explica. Havia esse sentimento lá, no “coração cego” como diz o capelão após os fatos consumados e diante da evidência de que o condenado não vai se refugiar na fé, ainda que fosse um sentimento mau. O que não se aceita, de forma alguma, em qualquer parte no que tange aos personagens e cenas que aglutinam a sociedade frente a qual o protagonista é o réu, são suas razões na realidade. Ele não sente além do dever-ser. É essa a mais incontestável verdade do texto sobre o personagem, conforme o que ele mesmo nos revela.
          Mas o que ele sente, quando não se trata do dever-ser? Envolve-se com Marie, a mulher que parece amar, mas na verdade, quando já está condenado e não pode vê-la, pensa nela como possivelmente morta: nesse caso, nada mais havia, não era preciso – nem se devia – sofrer. Na mãe – aqui reconheço a maestria de Camus – o personagem não pensa, desde que a enterra até às vésperas da guilhotina.
          Lembram-na constantemente, por que se exploram todos os ângulos do seu comportamento desde que recebe a notícia vinda do asilo, e o próprio fato dela estar no asilo em vez de com ele – que sendo pobre, não poderia tratá-la melhor. Mas ele não pensa nela, e sim no que está ocorrendo no momento, no processo, por onde interiormente a sua inabalável atitude de puro dever-ser vai se transformando numa argumentação constantemente dirigida aos acusadores e à sociedade persecutória.
         Essa argumentação faz a tessitura da prosa, mas não pode ser dita para alguém, é apenas pensada por ele como testemunha silenciosa dos fatos. Nela, a mãe é referenciada apenas como aquilo em que precisamente não se deve pensar, sobre quem nada se deve sentir, uma vez não estando mais aí. Ela mesma o teria ensinado assim.
           Mas o que realmente me parece que ficamos sem saber, é se o tribunal age em função do que diz ou, pelo contrário, em função do processo que deveria acontecer mas nunca acontecerá, aquele que visaria punir a humilhação dos estrangeiros, isto é, dos árabes, a moça e o irmão. Como vimos pelo texto da acusação, não se presentificam os motivos do crime, diz-se apenas que eram fúteis, mas o que se diz é que o criminoso era um devasso insensível à perda da mãe. As duas coisas serem inconciliáveis – a devassidão e a perda – é o que faz o sensacionalismo da fórmula retórica. A devassidão é apenas o encontro com Marie na praia – como sabemos, mas não é o que acontece que está em causa, e sim a conexão dos acontecimentos, isso de que se proíbe o protagonista projetar.
          A cena da praia é construída como a cena perfeita da juventude que, além dessa e da estadia na casa de praia antes da briga, está inteiramente deslocada, estranha, no que o texto vaza da realidade social de Argel, que sua leitura me provocou a impressão de ser opressiva. Falo da cena da juventude antecipada por Camus, em relação à que vemos no cinema americano dos anos cinquenta – o oposto total da cena da juventude de um cinema, no entanto pop, como a Laranja Mecânica de Kubrick. Camus nos fala certamente da violência e marginalização dessa juventude, mas a sua cena na praia não é a dos pobres meio bandidos do prédio, como Raymond e seu amigo da praia,  Masson, e sim a dos afluentes funcionários dos escritórios e filhos-família da geselshaft.






























       Nessa Argel os velhos também estão isolados, como o neurótico Salamano, com quem Mersaut é tão gentil. Todos são, como este velho, pouco ou muito sádicos. Meursault se entristece de que Marie compareça ao julgamento com os cabelos presos – um detalhe que o permite comunicar, talvez, essa avaliação que se evita conscientemente fazer sobre os outros.
           O que entristece e é tão avesso à juventude é a cobrança moral que aparentemente se está todo o tempo procedendo sobre os demais como um pre-texto acusatório – só uma vez Mersau tem vontade de chorar, quando se dá conta de como todos na sala do julgamento o odeiam ou desprezam sua pessoa.
          Aqui me parece não haver um sentimento pessoal, de fato, mas uma tristeza pelo que se constata da realidade. Não há a concepção social da inviolabilidade - ou valor por si – da pessoa particular qualquer. Esta está exposta ao julgamento público e seu valor é medido somente conforme esse juízo. A redundância do caso Meursau e da sociedade argelina - como o fantasma de uma só, unívoca, onipresente cena acusatória – me parece constatável, se bem que, algo mais que não sabemos, é se essa sociedade espelha ou não uma condição humana de inconciliação a priori entre esse modo de ser do social – ou da sociedade cristã – e o modo de ser da pessoa particular se ela persistisse na autenticidade de sua individuação.
            O conto é sobre Argel ou sobre o Homem? Pelo que sabemos de Camus, todo seu trabalho de escritor contem um elemento de problematização autobiográfica. A cena da execução na guilhotina é muito tematizada nos outros escritos. Seu pai – por quem ele é fascinado, tendo-o porém perdido na infância por ocasião da guerra – havia uma vez tido a ideia de ir assistir uma execução, cena da qual saíra extremamente abalado. É óbvia a rivalidade edipiana paralela ao fascínio, ao menos como construída nesses escritos. O filho, Camus escritor, enfrenta aquilo com que o pai fraco, ausente, não podia.
         A meu ver a reconstituição literária do próprio nascimento, em “O primeiro homem”, de fato preenche o desejo de ter sido o marido da mãe e a angústia desse hiato irônico de não poder ser o autor de si mesmo. Essa angústia é vivida como a realidade da guerra, da acusação, do conflito inconciliável que provoca a perda (do pai) mas do mesmo modo a perda da comunicabilidade intersubjetiva. O Estrangeiro encena a identificação total de Mersaul com a mãe, no fechamento do conto, quando a indiferença se completa a ponto de abranger o destino.


         Mas aqui, como poderia ser o caso da expressão lacaniana, o impossível torna-se a fonte do necessário e real, por que ao ser construída literariamente essa perda da intersubjetividade reconstitui concretamente o que é histórico ( a guerra, o subdesenvolvimento de Argel), político (a dominação cristã, o limite da liberdade da pessoa na sociedade dita liberal), e literário ( a marginalização do sentimento real, o estereótipo dos papeis sociais).

        O notável nesse conto é também que, se não há um momento de reconhecimento do ato intencional, muito menos há o reconhecimento da perda que o ato causa. Pelo contrário, Mersaul nunca diz que atirou num homem (árabe): atirou "na porta da desgraça". A moça humilhada pouco lhe importa, executa automaticamente a carta a pedido de Raymond. Quando afinal pensa nela, é com rancoroso desprezo, nada mais.

        Há pelo menos uma linha de leitura desse conto como sendo um libelo contra a pena de morte. Pelo que informam Vergez-Huisman, Camus era efetivamente contra. Mas de fato, o que o conto encena é a punição de atos concretamente realizados contra os verdadeiros objetos do preconceito - os árabes. A condenação, como observei acima, não focaliza especialmente aquilo que ela, contudo, realiza: a justiça anti-colonialista.

       A partir daqui, examino os mencionados artigos de Jorge Enrique e Xirau, onde vemos tratar-se da mesma oposição entre natureza e história, tão importante na inserção de Camus.
     
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     05/11/

     

            É interessante que Jorge Enrique tenha associado à “outra realidade” que seria a de um Realismo americano-latino singular – por seu afastamento dos princípios do Realismo programático tradicional, o do século XIX com seus princípios declarados à Taine e Eça de Queiroz – vários aspectos da literatura contemporânea: o nouveau roman, a collage que considera definidora da pop'art -  ele não menciona a décollage, designada “escola alemã” de Vostell e Schutz - o concretismo, citando-o a partir da música. Avança essa lista do “realismo de outra realidade”, até mesmo ao que explicitamente referencia como o “barroco” de Alejo Carpentier.
         Vemos assim que tanto nesse artigo de Enrique , quanto no de Xirau, a rubrica “realismo” na acepção de novo e reversivo do realismo tradicional apresenta-se inflacionada para abranger aquilo que habitualmente apresenta-se como oposto da terminologia do realismo qualquer, em ruptura para com ele ou contra que ele mesmo se colocou,  como as rubricas de modernismo ou surrealismo e especialmente o barroco.
          Examinando agora especificamente os referenciais da literatura americano-latina, Enrique designa Jorge Amado, que sabemos ser  escritor modernista, autor  de romances de um
“realismo lírico ” que considera aparentado às películas de Emilio Fernandez, e de fato inclui  na designação desse novo realismo tudo que é “tão pouco 'realista'” - na acepção do tradicional ou programático – como Juan Rulfo, Malcolm Lowry e D.H. Lawrence, estes relacionados a uma composição marcadamente poético-paisagística.
            O artigo incursiona por essa via conceitual de um realismo singular, a praticamente tudo de importante que se fez no século XX até essa altura (anos setenta), inclusive em cinema, como Glauber Rocha e Santiago Alvarez, relacionando-os a outros tipos de composição – estética da violência, romance fantástico, mas curiosamente, nenhuma rubrica relativa a temática sexual. Esse procedimento terminológico não é explicado. É apenas utilizado.
           Quanto a  Xirau, trata por tradição realista das letras hispânicas e americano-latinas aquilo que é bem anterior ao século XIX: do Mio Cid a Santa Tereza d'Avila e Cervantes, de Concolocorvo a Fernandez de Lizardi. O que habitualmente  designa-se Realismo programático, o do século XIX como estilo que se auto-designou dessa forma, ele coloca como também tradicional a nós, mas como um “outro tipo de realismo”, ao qual, ainda, deverá somar-se os produtos da sua crise a partir de Ruben Dario e o que habitualmente designamos modernismo.
            Ora, o emprego dessa terminologia em Xirau tampouco é explicitado. As letras hispânicas antes do realismo programático, na verdade “de psicológico tem muito pouco e nada de biológico no sentido científico da palavra”, muito menos se trata de “verificação e verossimilitude” como dos clássicos franceses. 
            Já o programático, penetra nas nossas letras como influência francesa, vindo de Balzac e Zola, entre outros, sendo “de análise social e psicológica”, convertendo-se em costumbrismo – são citados vários autores americano-latinos e hispânicos, entre os quais Galdóz, Alas e Peredas (Espanha), Palacio, Delgado e Rabasa (México), o chileno Gana e o colombiano Carrasquila, Cambaceres e Roberto Payró (Argentina).
            Xirau não chega a reduzir nominalmente os ismos da vanguarda ao realismo, a princípio, mas o faz afinal. Procede rigorosamente ao limitar algo como um novo realismo americano-latino somente a realizações das duas décadas iniciais do século XX, como em Rivera e Orozco, mas os trechos em que trata as vanguardas e o modernismo são na verdade análises de como essa prosa apenas modifica sua relação com a realidade que era passivamente imitativa no realismo estrito. Assim, quando se trata de resumir o exposto, o diagnóstico é uma crise do realismo em função apenas da descoberta “da 'outra' realidade – imaginária, fantástica, supra-real” e isso se estende à poesia, de Velarde e Gabriela Mistral a Valejo e Roberto Juarroz, entre os citados.
             Em vez da ruptura em nível terminológico, a inflação da terminologia em ambos os artigos permite atender ao que me parece o desejo de reconstituir um processo, em função dos nomes dos escritores americano-latinos, por si mesmo suscitando a imagem de uma autonomia da cultura americano-latina em relação à europeia.
          Mas esse seria um desejo singular, pois habitualmente sua expressão se realiza pelo viés oposto, aquele de julgar o modernismo uma ruptura decisiva para com o realismo a partir do descentramento do referencial cultural europeu: descoberta da arte bárbara como em Worringer, da arte africana como nos primitivistas, e do ethos aborígine como em Oswald de Andrade, portanto algo que não poderia conservar uma mesma terminologia "realista" que designa, inversamente, a arte limitada à história do Ocidente.
             Enquanto formalizante porém, em nível terminológico, esse desejo explícito dessa forma inusitada parece-me reproduzir o conteúdo dos dois textos. Trata-se ainda do Realismo como do problema da autonomia da literatura americano-latina, mas posto como que originariamente não pelo fato geográfico-antropológico do continente ser outro, e sim pelo fato da Sociedade, da nacionalidade independente, ocidentalizada, portanto culta na acepção única que ser letrada  aí pode obter, isto é, europeizada.
            O Realismo se torna então essa origem de uma sociedade local. Assim como vimos em Camus, a sociedade é pensável como na anterioridade do Romantismo, na ausência da concepção de História como ciência, ainda por oposição a priori à condição do primitivo ou selvagem, enquanto o que se desdobra como outro realismo vai enunciar apenas os deslocamentos constitutivos necessários ou imanentes à própria consecução do mesmo projeto de uma nacionalidade ocidental na margem.
           Como tenho enfatizado, desde o Realismo programático, concomitante ao Positivismo, a reposição do primitivo por oposição à sociedade volta a ser corrente, mas dentro de uma moldura classificadora sócio-evolucionista. Não é apenas a reutilização das clássicas teorias do contrato social o que substitui o historicismo romântico, como se pode ver pelo fato do marxismo, radicalmente anti-historicista, não poder ser reduzido a algum classicismo.
           O anti-historicismo de Marx e dos positivistas em geral pode ser expresso como um parâmetro materialista que cinge todo exame ao histórico e factual contanto que se esteja sabendo que a História não explica nada, ela é que tem que ser explicada - a partir de um determinismo natural-sociológico. Em Marx, a luta de classes, em Comte o industrialismo, ambos conceituados como a Racionalização da sociedade por serem supostos a cientificização da economia. Toda objetividade se reduzindo ao determinismo.
          Entre o modernismo e seu "pós", muita coisa tem estado em jogo, mas sem dúvida uma delas abrange as tentativas para romper de algum modo irreversível com essa teleologia ocidentalizante, sócio-evolucionista. Mas até o pós-modernismo isso não se mostra exequível, por fatores indeslocáveis,  um dos quais o marxismo. 
         Quanto à crítica da arte, o fator importante nesse sentido foram as fórmulas conceituais de leitura dos modernismos em termos de compromisso com a realidade ainda mais radical do que o Realismo programático. Abstraiu-se o peso histórico das descobertas da cultura da margem de inícios do século XX a partir da introdução da pesquisa de campo em antropologia e da ampliação da história da arte, como em Worringer. Com essa abstração, o modernismo se auto-conceituava apenas uma "nova objetividade".
           Pelo marxismo e pela renormalização subsequente ao ímpeto pioneiro das vanguardas, provou-se até aqui indeslocável a idealização contraditória da margem como explorada pelo Centro e só tendo sua emancipação garantida por meio de lograr reproduzir localmente o "progresso" - conceito ao mesmo tempo econômico e social", portanto cultural - do Centro. É importante quanto a isso notar a diferenciação que alguns críticos vem operando entre o modernismo de antes e de depois dos anos trinta. Quanto a este, torna-se designado "alto modernismo" precisamente como recusa dos primitivismos das vanguardas pioneiras, projeto de universalização do parâmetro objetivo, funcional, como na arquitetura de Le Corbusier. É em relação ao alto-modernismo que o pós-moderno se enunciou como ruptura.
         O notável é que o pleno retorno da temática da ruptura cultural na margem, nos anos setenta, se estivesse pelo contrário limitando a lances desse mesmo  projeto de radicalização do realismo. A questão é se isso provem de alguma característica inerente ao objeto, a produção local, ou pelo contrário, se coloca como um limite da crítica.
          Examinando os dois artigos, vemos que aparentemente
temos uma coincidência com a terminologia da diferença. Trata-se de querer avançar na construção de uma autonomia política que no entanto, enquanto autonomia, é contraditoriamente já existente na cultura enquanto não europeia, e absolutamente por construir nela enquanto até agora iletrada. O que implica, em ambos os textos, radiografar o pós-realismo histórico ou a literatura do século XX apenas como uma recusa da ingenuidade daquele realismo programático enquanto uma circunscrição a tipos ideais sujeitos da injustiça social.
         Em todo caso, os realismos, estrito e outro, são o referencial desse projeto de superação da injustiça social traduzida pelo subdesenvolvimento. Como tal podem já ter constado antes, mesmo quando não havia o programa explícito desse projeto na literatura, e ela se ocupava de celebrar uma realidade apenas idealizada.
           Esse outro ou novo realismo constrói, portanto, o que se considera agora o verdadeiro personagem sofredor da injustiça de que em todo caso, se trata. Não “o” índio moralmente íntegro objeto da venalidade do colonizador, mas esses índios que existem e que se dividem em posições individualmente tomadas frente aos problemas históricos e sociais; não um povo dividido entre tipos fáceis de reconhecer de modo a atribuir a cada um o seu papel  dentro de um esquema determinista da história, mas a população urbana onde as casas são habitadas por “tipos diferenciados e complexos”, onde “não é fácil diferenciar o inimigo”, nem sequer “determinar sua localização exata dentro do processo de produção”, como se expressa Enriques.
              Essa segmentação é simples demais, pode-se redarguir, entre por um lado, um realismo estrito que se ocupa dos camponeses esquematicamente oponíveis aos coronéis e um realismo contemporâneo, ao qual se pode reduzir todos os ismos da vanguarda por que se trata da extensão do mesmo projeto de modernização, apenas beneficiando-se das conquistas formais desses ismos, realismo que por outro lado deslocou-se do campo à cidade, e nessa realidade urbana encontrou a complexidade de que precisava para entender a situação em que se encontra de fato. O outro realismo é aquele em que o escritor se torna personagem. Vivencia o que denuncia, não é o testemunho ilustrado de uma realidade analfabeta.
           Simplismo aparente, pois se Machado de Assis, por exemplo, pode ser associado ao Realismo programático ou estrito, ele corresponde desde esse início a uma prosa urbana. Se temos um realismo regionalista brasileiro, ele é mais conhecido como um modernismo de segunda geração, portanto seria o outro. Contudo, Enriques é aqui bastante específico ao assinalar Roberto Arlt como o primeiro escritor dessa prosa dita "metafísica" da “grande capital”, e o Informe sobre ciegos, de Ernesto Sábato sendo também associado ao estatuto desse pioneirismo.
           Aqui há um jogo do texto entre a “superfície” e “os subterrâneos” (“metafísicos”), reproduzindo a segmentação da cidade ou da realidade, entre os realismos estrito e outro. Só o estrito permanece no superficial da “antiga realidade”, pois quanto ao outro, trata-se do itinerário espiritual, interior, do seu habitante – a então descoberta classe-média urbana.
          O produzido é então a verdadeira cidade ou a cidade do seu habitante, tal como só a ficção pode reconstituir, mesmo a partir da mescla de duas cidades históricas, Montevidéu e Buenos Aires, como a Santa Maria de Juan Carlos Onetti. 
           Em todo caso, importa reter esse programa de Enriques. Ele depende de uma esquematização dessa história que não se pode, em todo caso, tratar como a História Geral, sendo um referencial da margem, por onde há nela algo mais, o subdesenvolvimento.
           Na margem  por um lado, há uma ignorância constitutiva: “nem sequer se sabe onde ficam as fronteiras das grandes propriedades feudais”, paralela ao analfabetismo do camponês, portanto uma falta. Mas por outro lado uma duplicação indevida, um excesso. O subdesenvolvimento é a “torpe economia de exploração a duas mãos, oligárquica e imperialista”, assim como também definida em termos de “exploração feudal e estrangeira”. Não deixa impercebido Enriques que ela tem “sua base mais injusta no campo”, e o celebrado deslocamento do outro realismo à cidade não implica portanto uma alienação desse fator.
       A estruturação do texto de de Enrique é mais dependente
 que a do texto de Xirau, desse arcabouço histórico-político que em Xirau é substituído pela alusão à conexão do realismo estrito com o positivismo e suas implicações filosóficas. Contudo, em ambos, o resultado é o mesmo a partir do comum embasamento.
          Pois, como vimos, em todo caso não há ruptura com a terminologia da “realidade” - conservada nos termos de um compromisso realista - como o eixo em torno do qual giram todas as composições, das mais diversas procedências e estilos.
            O resultado é, paradoxalmente, o mito em Xirau, o barroco (=católico) de Enrique e também tangenciado em Xirau, como fórmulas da conquistada alteridade ou autonomia da arte americano-latina. 
          Conceitua-se assim a sua comum leitura, a partir da interpretação de que aquilo que ocorreu após o realismo programático foi uma tomada de posição do sujeito da cultura, o escritor, frente à realidade. Ele então a rejeita para criar uma outra. Mas essa outra realidade não é mais que ele mesmo, nunca portanto enquanto Sujeito. Ele continua a ser “o autor” que é ele mesmo “o personagem do romance latino-americano de agora”, na expressão de Enrique.
         Em vez do narrador-personagem, é o autor-personagem que se conceitua, e ele é quem vai produzir ou encontrar, ambiguamente as duas coisas, a “sua identidade” – portanto pessoal e cultural, social e histórica – na obra.
        Não poderíamos esperar outra coisa, se tanto o mito quanto o barroco são formas culturais que antecedem a modernidade ou o Romantismo no centro, isto é, são gêneros onde não está corrente a problemática do Sujeito contemporâneo constituído do split público-privado.
           O conflito não chega a ser atribuído a um indivíduo que deve ser literariamente construído a partir dessa sua irredutibilidade existencial a tudo o mais, em seu processo subjetivo como falhado ou em seu discurso objetivo como atuante. Há o personagem universal do conflito, o  americano-latino, cujos dois termos em confronto são por um lado o que designarei uma pessoa que se delira a totalidade do sentido e do outro lado tampouco a sociedade como algo já constituído, mas “a” realidade dada imediata, por si, como se pensava o materialismo no realismo estrito.
          O resultado do conflito é então o desfazimento dessa realidade mas pelo triunfo daquela pessoa tornada então a totalidade do Real – ora visada como substancialidade de todo fenômeno sensível, ora visada como substancialidade de todo fenômeno cultural.
           Os termos do conflito assim estruturado são bem camusianos, porém. Eles reproduzem a oposição entre por um lado, a natureza inamovível e indiferente, o colonialismo e o subdesenvolvimento, lado para o qual se empurra a negatividade do inculto ou selvagem, o explorado típico, esse o lado da Realidade a que o realismo estrito teria se fixado. Como na citação de Huidobro por Xirau: “Temos cantado à Natureza (coisa que pouco lhe importa)...". Esse lado que Alejo Carpentier, conforme Enrique, expressa na coexistência na América-Latina do quaternário (período evolutivo) e do século XXI.

























          Por outro lado está a pessoa que agora não mais aceita a natureza como tal, e com ela entra numa luta. O criacionismo de Huidobro expressa essa pessoa que se tornou totalizante após o conflito. Ele criará a realidade, mas o fará assim como “ela [a natureza]o faz e o fez nos tempos passados, quando era jovem e cheia de impulsos criadores”, ou ainda esse “criacionismo” entende por criação “fazer um poema como a natureza faz uma árvore”.

           Sendo que Huidobro, escrevendo em inícios do século XX, polemizou com seu criacionismo contra a escrita automática dos surrealistas. Essa criação não poderia elidir a expressão intelectual ou programática do criador. Em Borges, o substituído criador é Deus, mas para do mesmo modo mostrar a Ele que os homens podem criar, assim como Ele, o mundo, e se Deus continuar a existir, Buenos Aires é o único lugar onde ele poderá andar – “a sus anchas”. Essa pessoa, delirada uma realidade substancial totalizante, se idealiza (como Real) em vez de se construir (como "simbólico").
         Mas seria inapropriado sugerir que esse realismo singular e o que ele implica, a inflação do barroco nos termos de uma fórmula universal da literatura americano-latina, é apenas mais um exemplo do secular atraso da margem em relação ao Centro. Inversamente, podemos posicionar os elementos formativos dessa conceituação paralelamente à transição teórica que entre Europa e Eua, está corrente desde essa época e continua por se compreender. Referencio assim a transição pós-psicanalítica, como especialmente de Lacan a Deleuze-Guattari, o que pela altura dos anos oitenta se amplificou consideravelmente como locus da controvérsia jamesoniana com o inconsciente esquizoanalítico.
         O registro da influência deleuziana já desde os anos setenta no Brasil, e especialmente a crítica do Anti-Édipo ao universal do Édipo é indubitável. Ao longo dos anos oitenta essa influência se tornou mais importante, e os anos noventa foram palco de uma projeção dos trabalhos deleuze-guattarianos no cenário universitário, especialmente na Uerj - contando com a estadia do professor Eric Alliez, já tendo estado consolidada uma linha acadêmica local dos estudos deleuzianos.
         A publicação da "trans", editora organizada por Alliez junto a profissionais brasileiros, de artigos sobre Deleuze contém uma temática explícita da conexão do "neobarroco" americano-latino com o pensador, escrito por Haroldo de Campos ("Barrocolúdio deleuzeano").
         O volume em que constam os dois artigos que estamos examinando, "América Latina em sua literatura", organizado pela Unesco (ed. Perspectiva), apresenta do mesmo modo um artigo de Severo Sarduy onde essa concepção de "neobarroco" é positivamente investida. Curiosamente, nesse caso trata-se de uma justificativa psicanalítica da concepção estética que pretende ser a afirmação presente de uma fórmula americano-latina discernível desde a literatura colonial.
         Cotejando esses textos, vemos que é em torno da temática da reflexão que o conceito se constitui, na medida em que o barroco é um deslocamento do classicismo a partir do investimento no reflexo, na duplicidade da aparência, em vez de no ser e na unidade da essência. O reflexo, como a dobra leibniziana que Deleuze conceituou, é uma reflexão infinita tal que não poderia completar uma auto-reflexão. Cada mônada espelha o mundo, mas não há o mundo fora do espelhamento singular das mônadas, uma vez que ele é apenas o princípio de compossibilidade delas mesmas como co-existentes.
         O conceito leibniziano de mônada é conexo à sua novidade conceitual, de uma "noção individual. Há o conceito de uma individualidade humana, a partir dos acontecimentos ou destino que une a história de cada um à sua inserção nesse mundo reduzido a princípio lógico de conexão de acontecimentos. Atravessar o Rubicão define essencialmente o indivíduo Cesar. Mas esse pensamento aparentemente já moderno, sendo pós-feudal, portanto abrangendo conceitos de história e indivíduo, não é como desde o Romantismo, o de uma subjetividade que Se reflete formando-se para si. Há essência porque se pode predicar um caráter necessário ao acontecimento, em função do princípio lógico do mundo cujo autor é Deus.
          Mas se o barroco está marcado pelo deslocamento da visão de mundo feudal a partir da descoberta da margem, ele assinala também a entrada das produções da margem na literatura, a partir do fato da colonização já estar avançada a ponto de constituir-se aqui uma classe letrada, enraizando-se a comunidade colonizadora em função de problemas próprios de sua localização tropical.
         A reflexão no barroco abrange vários temas literários, entre eles um uso pronunciado da paródia em que se centrou a revalorização do barroco atual americano-latino. Pois, construída literariamente como paródia, a reflexão aprofunda o que era o interesse deleuziano nesse retorno a Leibniz: em vez de uma subjetividade como processo universal de sua construção ("simbólico"), cujo resultado deve ser invariavelmente o sujeito privado cuja inteligibilidade é a alteridade eu/tu na linguagem, a reflexão é uma singularidade de mundo: ao mesmo tempo que a pertença a um mundo (compossível), é a diferença reflexiva-virtual de cada mundo ou mônada como visão de mundo possível.
           Nessa colocação Deleuze vai posicionar também a Bergson, apenas em vez da reflexão singular de um princípio de compossibilidade como em Leibniz, em Bergson trata-se da duração (individual) como singularidade da temporalização de uma consciência, do mesmo modo resultando uma visão absolutamente singular de algo único em termos de "tempo puro" (todo o tempo passado).
        Em Severo Sarduy, torna-se patente que essa totalidade de problemática conceituação - pois ela não pode ser refletida em si mesmo, apenas institui a lei da diferença de si mesma enquanto refletida infinitamente - é na margem a cultura do Centro, parodiada infinitamente e assim deslocada, posta na derrisão de um referencial esvaziado por aquilo que a princípio se coloca na condição humilde de sua cópia. É com efeito, a paródia um gênero menor em relação ao parodiado, mas de modo tal que não resta nada do parodiado além de sua conservação ironizada na cópia.
       Sarduy pensa que em termos de fórmula literária da margem, o Barroco em sentido estrito - a literatura colonial - é formulado em torno dessa concepção de paródia, e portanto conserva-se investido como neobarroco enquanto sempre recriamos criticamente a cultura internacional, mas nesse ínterim conceitua a emergência do Romantismo como uma emancipação do que limitava o Barroco estrito num dualismo da colônia à margem. O Romantismo seria o objeto perdido, enquanto o Barroco, ainda somente o objeto parcial. Mas é o neobarroco que liberta efetivamente, na contemporaneidade, porquanto auto-conceituando-se não mais como importação de um estilo produzido primeiro alhures, e sim como processo criativo cuja estruturação é inerente à condição de uma literatura menor como de margem.
        Inversamente,  um deslocamento do princípio objetivo inerente ao inconsciente freudo-lacaniano, é o que está em jogo, como vimos, nas perspectivas de Xirau e Jorge Enrique, assim como em Deleuze-Guattari.
          Jameson moveu uma crítica ao inconsciente esquizoanalítico na base de que ele ignora a cisão público-privado, implícita ao sentido de qualquer conceito de "inconsciente". É interessante que tenha desenvolvido essa crítica justamente em seu artigo sobre a "Third-World literature in the era of multinational capitalism". Na concepção de Jameson, todo fenômeno cultural em que se possa discernir a ausência da cisão público-privado resta uma alegoria do que está ocorrendo em nível público, não chega a ser um investimento do privado, não obstante possa estar tematizando apenas um personagem dado como na individualidade da sua experiência, em vez de diretamente um tema histórico.
        Aqui devemos lembrar que no Ocidente, o Sujeito (privado) pensável só emerge de fato com o Romantismo. A meu ver, e nisso convergindo com as recentes conceituações da modernidade não mais em termos da ascenção da burguesia (fenômeno econômico) mas em termos da presentificação do split público-privado (fenômeno social), nós não devemos pensar a centralidade do Sujeito na estética do romantismo como algo que possa ser explicado por outros motivos históricos, pelo contrário, é a emergência do Sujeito que define a transição ao Romantismo de modo a explicar os outros motivos históricos a ele ligados.
         Como o que eu designaria um neomarxista, por não mais poder colocar a categoria do Sujeito na base do mero individualismo "burguês", por outro lado Jameson teria que explicar como é que uma leitura alegórica pode estar presentificada no Ocidente contemporâneo, à exemplo do inconsciente esquizoanalítico. Ele o faz diferenciando alegoria inconsciente e alegoria consciente. A alegoria em Deleuze-Guattari é inconsciente - pois eles pensam que estão tratando o inconsciente em si mesmo. A alegoria nacional no terceiro mundo seria consciente, implicando "uma relação radical e objetivamente diferente entre política e dinâmica libidinal" ( "a radically differente and objectiva relationship of politics to libidinal dynamics").
        Ou seja, a alegoria no Centro é o resultado de um avanço, pois se trata de positivamente estar, no presente, problematizando o split, lembrando que Jameson continua um marxista, e assim para ele o Split é dialeticamente uma evolução histórica e o que ainda precisa ser mais evoluído (suprassumido) pela evolução socialista. Na margem, inversamente, não há problematização, mas ausência, o que implica que ainda não houve a evolução histórica que enquanto social, estaria refletindo a evolução econômica do advento da burguesia.
         A crítica de Jameson a Deleuze-Guattari é somente que nenhuma "intellectual diagnosis" poderia ser suficiente para operar a evolução em relação ao presente do capitalismo. A mudança histórica não pode ser operada nem ao nível privado do ato socialmente simbólico que é a produção cultural reportada de alguém, nem ao nível social onde está em trânsito o conflito efetivo de classes, mas somente naquele nível estrutural, além da história, do Modo de Produção. O resultado dessa mudança, se ela for o socialismo, não poderia, em caso algum, representar um retrocesso em relação à evolução mental que a produtividade econômica da indústria e a objetividade científica contemporânea traduzem a partir do split público-privado que se define como a edipianização completa da libido.
         Jameson referencia a interpretação que se faz no Anti-Édipo do sonho da personagem do filme de Nicholas Ray, mostrando que ignora o fato de que a linguagem onírica inconsciente não diz nada além do próprio trânsito desejante-significante, enquanto Deleuze-Guattari projetam conteúdos históricos relativos à vida e a cultura do sujeito.
           Mas Jameson não tematiza a interconexão da cultura de Margem à do Centro, de modo que não apreende a multiplicidade de concepções em trânsito na margem em função da própria multiplicidade em trânsito do Centro. Como poderíamos marcar uma diferença essencial entre a recusa da historicidade dos estilos nos termos de fixação (neo)barroca, ante-romântica, ante-splitada da subjetividade, na margem, se ela está explicitamente conexa ao andamento da mesma coisa no Centro?
          Assim, Haroldo de Campos está conscienciosamente opondo-se, junto a Deleuze, a uma concepção dos estilos de época historicizada tal que não poderíamos separar, não tanto a forma,
     mas a emergência do estilo,
       naquilo em que este  explicitamente tematiza de sua própria novidade nos termos dos seus textos autênticos.
     Haroldo ataca violentamente Tagliabue por ter estudado detalhadamente o que na verdade é a inegável estruturação do Barroco histórico pela Poética aristotélica - como se define por exemplo, em Carpeaux.
          Deleuze por um lado, recusa a história conceituada a princípio como recusa da teleologia, mas na verdade sendo mais do que isso, uma oposição entre história e devir.  Aqui devemos recordar o fato de que o Romantismo opera a emergência do Sujeito pensável em estrita conexão com a emergência da História como ciência, o que implica a cisão dos estudos históricos e produção literária que assim se autonomiza. A história se torna a ciência do documento e sua interpretação, não mais a erudição ética da memória ou tradição.
          Ela se investe do que até aí lhe era vedado, o estatuto do relevante ou verdadeiro atribuído aos fatos humanos, o que vimos impossível em Aristóteles, como também se pode afirmar impossível em Descartes. A literatura desde o Romantismo se torna o locus problemático da ficção que é ao mesmo tempo uma verdade do sujeito privado naquilo em que ele não é mais redutível aos fatos sem ser o estruturante do sentido da sua participação neles,  enquanto paralelamente a revolução conceitual do pós-kantismo coloca a subjetividade como estatuto formal do pensamento.
         Ora, a concepção de Haroldo  é bem irredutível ao investimento puramente formal pós-moderno, do passado estético, oportunamente designado "historicismo". Aqui não se recircula um estilo, mas se reproduz algo efetivamente já feito - por exemplo, um frontão de Michelângelo -  e se o integra apenas como componente de uma obra pefeitamente autônoma.
       O que faz o neobarroco definido como fórmula cultural -americano-latina ou pós-psicanalítica -  é apenas recusar a historicidade como elemento em que se engendra a superação da oposição bruta das teorias do "contrato social", entre natureza/devir e cultura/história, oposição reafirmada como vimos a partir dos determinismos do realismo-positivismo aos a prioris estruturais, como o da "memória virtual" do inconsciente deleuze-guattariano, traduzindo a mônada de Leibniz ou o ponto de vista do passado virtual de Bergson. Aqui é importante notar que nem todos concordam com Deleuze a propósito de um bergsonismo proustiano, e pelo contrário veem Proust como uma prosa do tempo espacializado einsteiniano, como eu mesma concordaria.
            O inconsciente esquizoanalítico, não reconstitui apenas um pensamento "barroco", mas reutiliza a antropologia positivista de Morgan, para conceituar um inconsciente selvagem oponível aos inconscientes bárbaro e ao civilizado, somente este último edipiano, surgindo com o capitalismo. Mas o desejo em si é capitalista - desterritorializante/desterritorializado.
        A antropologia social não poderia suportar hoje em dia uma classificação como a de Morgan. Não poderíamos colocar numa mesma base as sociedades aborígines americano-latinas e africanas, por exemplo. Um "inconsciente selvagem" resta uma totalização arbitrária de conceitos utilizados das humanities que no entanto não são os de sua linha de descoberta, mas dos grandes relatos que essa linha vai sucessivamente apagando quanto à validez.
          Não só a terminologia deleuziana da sociedade/inconsciente "selvagem" é de Morgan, mas a sua definição dessas sociedades como "segmentares" - metaforizadas pela estrutura física dos verminóides oposta à estrutura física dos animais com sistema nervoso central que metaforiza, inversamente, a sociedade ocidental civilizada - já era utilizada por Durkheim. Nada disso se mantem válido na especialização da antropologia social recente.
          Aqui, não obstante, não estamos ignorando que o fator que motiva o desenvolvimento da esquizoanálise é a crítica à totalização universalizante do desejo a partir da psicanálise. Nem o fato de que Jameson não é menos totalizante da alteridade do terceiro mundo, como vimos. Mas quanto a ele, torna-se complicado focalizar uma crítica, porque a trajetória da teoria na América Latina não recuou da posição "realista", mas pelo contrário, a radicalizou nos termos de uma retomada do próprio conceito de literatura realista em sentido estrito, numa vertente diversa da que tematizou de forma um tanto complexa, porque se tratava por vezes ao mesmo tempo de crítica e de produção literárias, o (neo)-barroco.
         A partir daqui examino essa posição "realista" assim como se expressou num congresso recente (Uerj, 1996).


          
          A famosa crítica que Machado de Assis endereçou a Eça de Queiroz foi recentemente tematizada por  Pedro Calheiros, com o objetivo de deslocar nas letras pátrias um certo consenso que havia antes sido estabelecido pela leitura do incidente por Lucia Miguel Pereira.
          Assim a utilização desse incidente ao proveito de esclarecimento das relações pessoais entre estes autores não se mostra pertinente a Calheiros, mas sim a aplicação à abrangência da crítica a propósito do contraste entre Romantismo e Realismo. A meus propósitos essa contraposição de Calheiros a Lucia Miguel Pereira se revela oportuna ao desenvolvimento do contrate dos ethoi historicamente situados destes dois estilos.
          Calheiros reporta que, conforme Lucia Miguel Pereira,
Machado havia reprovado em O crime do padre Amaro e O primo Basílio, a ausência de caracterização espiritual dos personagens não só como um vezo do Realismo, mas como radicalização dos seus princípios. Seria para ela uma crítica justa, por outro lado tendo Machado realmente defendido as letras pátrias do que seria uma degeneração estranha marcada por mera voga passageira. Agora Calheiros tende a defender Eça, considerando Machado passadista e ingênuo.
          Há redução da crítica anterior a uma questão de ética reacionária, católica. Mas o ponto em que insiste Calheiros é que inversamente ao que teria sido o bom serviço de Machado às letras, o realismo radicalizado das obras iniciais de Eça não teve que ser mitigado depois para que se salvasse a literatura como julgava o escritor brasileiro dever vir a ocorrer, mas pelo contrário, vicejou até o prolongamento naturalista.
           Essa perspectiva de Calheiros centra-se portanto, numa oposição bem marcada entre moralismo reacionário e obscurantismo, ignorância da ciência. Essas seriam características “da bitola romântica”. A seu ver, se continua inegável que Garret, Heculano e Alencar são mananciais da arte pura, como modelos acalentados nessa limitação, as águas precisariam continuar rolando para não estagnarem, imagem com que se defende a novidade do Realismo-Naturalismo. A prosa crítica chega a certa indignação perante o que seria a censura à expressão da sensualidade natural, expressamente veiculando a verdade que seria de hoje, onde arte e censura moral não mais estão atreladas como ponto de vista teórico-crítico aceitável. Aqui o realismo não é associado a estreiteza de vistas quanto ao sexo, mas como franqueamento literário da temática.
       A meu ver, o que Machado está criticando é o determinismo com que Eça opera, não obstante a verve moralista que move a crítica de Machado. Ressalto o trecho crítico, citado em Calheiros, onde o argumento está focalizando a incoordenação entre tema e horizonte. Este é que parece ter roubado a cena, o que a Machado parece vício de estilo.
         O tema devendo prover a unidade propriamente romanesca, resolver-se-ia em “influência moral” ou “ensinamento”, mas eis o que para recuperar-se ao cabo da leitura, teriam os que não se deixaram perder nos pormenores, “a castidade inadvertida” , de voltar ao princípio. Lucia Miguel Pereira pode assim falar da desmontagem da obra pelo crítico. As partes de início não pareceriam articuladas ao que se apresenta depois. De início o que ocorre é deterministicamente a natureza, mas o romance é preenchido por uma problemática moral, portanto independente.
         Machado não enfatiza o que o levantamento de Welleck a propósito das críticas ao Realismo focalizou em termos do descompasso entre fidelidade descritiva do real e didaticismo, mas sim a arbitrariedade da descrição contrastada à veleidade de ser “realista” - na verdade o romances de Eça criticado sendo naturalista, ao ver de Calheiros, creditando assim mais um engano ao autor brasileiro. Aqui ser realista significa descrever o que materialmente povoa a realidade cotidiana. Até que ponto ela iria, para manter-se nesse dogma de princípio, indaga Machado. Chegaria ao detalhe (ato) “ínfimo”?
           Não obstante essa também ser uma crítica bastante comum ao Realismo, o perder-se no detalhe insignificante, esse não seria, a meu ver, o ponto importante da crítica técnica de Machado, mas o que causa a incoordenação do início ao preenchimento do romance. Seria o mesmo que conduz a personagem de Eça à aparência de um “títere”, contrastada à de Balzac, na concepção de Machado. O que este provê é a moralidade da personagem, ausente naquele.
         Ora, Machado me parece estar reclamando não da ausência de escrúpulos, mas da ausência de uma psicologia introspectiva, interpretada como fio incorruptível da causa ao efeito num plano intencional sem hiatos do cálculo ao efeito atuado, operando exclusivamente desde valores éticos explicitáveis, quando se trata do início do romance.
       Poderíamos entender porque alguém age viciosamente, se esses valores são deturpados em relação aos que aprovaríamos. Ou poderíamos entender um efeito emanado de um estado de fato – a cegueira física de alguém levando a tropeçar. Em vez de que a letra desse Realismo não mitigado reduz-se a uma “descrição minuciosa, quase técnica” , e são as expressões de Machado na complementação do que é assim descrito o dado revelador.
       Se fossem apenas as “relações adúlteras”, caberia a crítica no rótulo de moralizante. Mas estende-se a “ideias e sensações lascivas”, indo ao invés de traços personalísticos e distintivos da pessoa feminina “direto às indicações sensuais”. Além disso, agora já não se trata apenas da descrição ser seca (“quase técnica”) ou emular um parecer médico, ela “acumula e mescla” esses itens que assim, sendo seu conteúdo, realmente não se amalgamam numa narrativa.






















       A defesa de Calheiros desses dois romances de Eça como naturalistas, contrasta com sua apreciação por José Augusto França escrevendo sobre “O Romantismo em Portugal” (citado em José de Nicola, Língua, literatura e redação). Esse viés detecta O Crime do padre Amaro tingido de romantismo nas soluções das duas primeiras versões. Mas se na terceira o padre de fato não comete o crime – não mata o filho nascido do seu pecado contra o voto do celibato – a questão é por que Eça mantém o título.

           França deduz que o “crime” do título persiste nesta última versão por ter mudado de sentido, transitando “do nível individual para o social”. A moral da história não é mais como nos “romances nacionais” de até então, que pretendiam apenas “estudar' e 'explicar' um problema”. O próprio ensinamento como unidade da trama romanesca viria agora como um determinismo social. O pecado do padre não tem mais a importância espiritual que tinha nas versões anteriores, onde forçosamente tinha que significar um crime. Sua importância tornou-se somente correlata ao fato de ser transgressivo às regras do costume.

          Ao que parece a intuição de França relaciona a proliferação assinalada das versões à transição do Romantismo ao Realismo. Aqui o ethos de ambos subentende-se, porém, do mesmo modo que em Calheiros, atribuindo-se ao primeiro um passadismo moralizante e ao segundo uma inserção no social daquilo que somente de outro modo poderia conservar um significado próprio. Está assim também subentendendo-se a clássica divisão de subjetivismo e objetividade respectiva aos dois estilos.

          A objetividade forçosamente implica o franqueamento dos limites da moralidade tradicional, devido à perda do objeto típico dos sentimentalismos. Essa é interpretação pró-realista, recalcadora do Romantismo, que não coloca a problemática deste em sentido autêntico.

          A pecha de idealizante da mulher que se atribui ao Romantismo, na verdade não é bem o que se deveria entender desse estilo, como se poderia notar pela crítica de princípios do século XX à nossa segunda geração romântica como especialmente lasciva e típica da "mestiçagem moral" da margem - como na preconceituosa história da literatura de José Veríssimo. Esse estereótipo do popular brasileiro como "mestiço moral" - lascivo, irresponsável, indolente e de má índole -  foi consenso da primeira esquerda marxista protagonizada localmente pelo imigrante italiano. A história do marxismo local antecipa o que Wilhelm Reich reportou da guinada conservantista da Russia Soviética ("A revolução sexual").
         Governos espantosamente estruturados por um projeto de perseguição racial/cultural do popular nacional votado a ser substituído pelo elemento esclarecido Ocidental (imigrante europeu ou familiar europeizado) foram comuns tanto na República brasileira positivista quanto das idealizações do progresso marxistas - na Russia, o problema do camponês. O que estrutura esses governos é algum grande relato da ciência ocidental - como o de Comte ou Marx.
         Na atualidade, o alinhamento à globalização contem um elemento dessa política, só que entendendo-se como "Ocidental" um fator de acesso setorizado que se limita a função do interesse institucional, havendo o mesmo grau de discriminação envolvido. Assim até mesmo o "cientista" agente do desenvolvimento é idealizado como identidade, não se o concebe como o Sujeito qualquer que apenas segue uma carreira do seu interesse.
          Como referenciei na minha publicação recente sobre O Pós-moderno, o desenvolvimentismo na margem implica um receituário como o de Samir Thabet: grandes investimentos na mídia para sufocar a índole "poética e sonhadora" de uma juventude obrigada assim a se tornar unicamente prática e objetiva, como o que se supõe ser o cientista da natureza e o engenheiro, em função do que seria o interesse nacional. Mas desconhecendo-se a realidade do cientista que se pensa estar  imitando do do Centro,  que como Prigogine, Feyerabend ou Feynman, se pensam num total antagonismo a essá rotulação de si mesmos posto que suas personalidades subjetivas nada tem a ver com essa limitação.
         O oposto dessa vertente no Brasil republicano, são governos igualmente identitários - não verdadeiramente democráticos,  portanto -  mas cujo elemento privilegiado é algum estereótipo passadista ou culturalista, da tradição/cultura local. Aqui o grande relato subjacente é o funcionalismo, a hemenêutica-fenomenológica nas suas várias vertentes, entre Sartre, Husserl e Heidegger, o neokantismo, ou ainda, a sociologia compreensiva.
         Em total contradição com a imagem de liberação sexual do brasileiro, o artigo de Calheiros acresce aos dois núcleos de caracterização oposta, fortemente adjetivada em função do juízo ético do crítico, entre Romantismo passadista e Realismo progressista, também a oposição de origem, o Eça português esclarecido e o Machado brasileiro repressivo.
         Torna-se interessante assim contrastar esse diagnóstico, que encerra um significado histórico do Realismo como fator de progresso ético-social humano, carta, pois, da racionalidade nas letras e na sociedade em questão, com o artigo de Urbano Tavares Rodrigues sobre Esteiros de Soeiro Pereira Gomes, no seu volume reunindo aportes sobre vários autores contemporâneos e intitulado justamente “Um novo olhar sobre o neo-realismo” (1981).
            Aqui a penetração do marxismo em Portugal, que incide no decurso do estilo paralelamente à emergência dos simbolismos e modernismos que assinalam o cenário posterior à sua predominância típica, mas sem desrevestir de importância a sua conservação como o prova a constelação temática em torno do “Realismo Socialista”, é bem ventilada.
          Mas se a intenção de Rodrigues parece ser unir as realizações nesse campo aos instrumentos teóricos pertinentes à apreciação da Vanguarda, solvendo desse modo o estereótipo da pobreza de inventiva e da extrema limitação da realização formal de todo “realismo”, quanto ao aspecto temático, que deveria explorar precisamente o aprofundamento na visibilidade do comportamento sexual, o que decorre é a inversão da estimativa de Calheiros.
           Utiliza Rodrigues a demonstração de Alvaro Pina em torno da comparação do escritor português e do brasileiro Jorge Amado. O item comum é “a comunidade pícara dos adolescentes”, mas em Soeiro, o líder Gineto, na paráfrase de Rodrigues a propósito de Pina é “tão-só figura demarcada por uma virtude sem controlo nem objectivo (sic); a coragem”.
           Paralelo a esse grupo de marginalizados pela miséria, em Esteiros o trabalho operário tem um papel marcante, podendo concretizar a oposição entre destino socialmente condicionado (marginalização) e anti-destino (integração).
           A tradição da literatura pícara é identificada por Rodrigues como informando a comicidade do grupo de marginais adolescentes. Mas inversamente ao ethos dessa tradição – Cervantes; Mateo Alemán – em Soeiro a condenação do truão como apologética da virtude se substitui pela explicação social da condição dele, o que não implica qualquer aprovação desse destino ou invasão temática além do que no comportamento continua dessa forma determinado. Inversamente, Jorge Amado – Capitães de Areia é aqui o referencial - manifesta na concepção de Rodrigues, uma “poética da marginalidade”. O que interessa sobremodo ao nosso propósito é o argumento que se aduz: "com certo comprazimento na violência e no erótico-escatológico”.
          Não há qualquer evidência que impeça interpretar o juízo como portando sobre o próprio escritor em sua relação com a matéria. Ora, o que pode suportar a interpretação de Calheiros sobre a crítica de Machado ser de cunho puramente moralizante, é justamente ter ele ressaltado a relação do escritor ao objeto: “em que o escuso e o torpe eram tratados com um carinho minucioso e relacionados com uma exação de inventário...”.
          Seria mesmo muito estranho defender que entre Brasil e Portugal, o franqueamento da censura religiosa e tradicional seja mais característico deste último.  Rodrigues duvida assim que a caracterização do grupo de adolescentes em Esteiros seja produto da influência de Jorge Amado, ou mesmo de Michael Gold.
         Mas o que precisaríamos considerar é a centralidade que a crítica consagra a Machado como a voz típica das nossas letras - ignorando por exemplo, a temática naturalista em Qorpo Santo.  
             Inversamente, o que se poderia propor é uma diferenciação progressiva de investimentos que opõe qualitativamente a índole da temática sexual assim sempre mais referencial ao literário, entre esses dois países, uma vez que eles devem investir códigos culturais diferentes.
          O realismo-naturalismo em geral já foi atribuído como o marco da transformação do estatuto da linguagem literária, que desde então pode abranger qualquer assunto e abarcar qualquer objeto. Mas na abrangência desse estilo a temática do sexo  tem efetivamente essa presilha do social no ambiente europeu, onde Portugal e Espanha se destacam por sua história de persistência jesuítica e da tradição católica sempre em descompasso com relação à trajetória do liberalismo até uma generalização mais nítida da modernidade desde inícios do século XX em todo o mundo.
        Afinal, a fase de Eça ulterior ao Realismo é a que investe um social-nacionalismo tal que sua literatura se consagra à propaganda do colonialismo português na África, como José de Nicola caracteriza “A ilustre casa de Ramires”. Há também um investimento na crítica da metrópole capitalista - como em A Cidade e as Serras,  que vai tornar-se bastante referencial do momento de transição ao século XX, como se pode observar subjacente a What Maisie Knew, de James.
          Enquanto o Brasil exibe uma dualidade, por um lado uma cultura letrada que mais realista que o rei, conforme a expressão popular, pretende igualar-se ao status colonizador contra a suspeita da pertença miscigenada local utilizando como meio a observância farisaica da moralidade cristã e da tradição ocidental. Por outro lado, há os investimentos de uma literatura autêntica da inserção cultural local, miscigenada, e nessa vertente o que se procura é recuperar os traços da originalidade dos ethoi de gênero assim confluentes e desconhecidos das tradições europeias.
             A linha pícara me parece não servir à inserção do extravasamento do limite cultural em Capitães de Areia, onde o que se focaliza são itens de uma sensibilidade articulada a formas alternativas em relação à tradição literária ocidental, proveniente ao invés, de culturais negras e miscigenadas, notadamente na Bahia onde é muito generalizada a tradição dos Candomblés e Umbandas. O elemento popular que a literatura realista deveria resgatar por sua própria índole social não poderia exemplificar os determinismos do universal europeus, o que faz da preservação do Realismo entre nós, como vimos, algo muito diverso da moralização realista-socialista, via objetividade, e pelo contrário, o que se propagou foi um realismo-mágico cuja linha conflui mai recentemente com a forma contemporânea do “Fantástico”.
          Mas nessa linha, em vez da limitação ao Realismo ou à paródia (neo)-barroca,  houve o investimento teórico do desfazimento do Cânon letrado ocidental, com vistas à construção de uma historicidade imanente. Esse viés na crítica é tematizado, contudo, pela terminologia da "anti"- arte, antilieratura, antiteatro, antipoesia). como em Fernando Alegria. Seu artigo sobre "Antiliteratura", integrando o volume citado da Unesco, onde, contudo, a recusa permanece camusiana.
          Explicitada como de uma "mentira", é feita com o objetivo de manifestar ao homem o espelho onde está sua imagem, a qual é uma "carga do absurdo" que significa ao mesmo tempo "a nossa herança"  e a "condição humana" que é o que deve servisceralmente aceita. Contudo, não se fala de Camus, mas de Tzara, e do Dadá como um "dogma: o caos é a razão de existir". Sintomaticamente, o Dadá não basta, e é a Breton que Alegria vai assinalar como a explicação da evolução posterior da antiliteratura: "O artista revolucionário se põe a cortar as costuras da arte institucional não porque deva seguir um programa, mas por necessidade pessoal, No processo ele se vê e se julga. É sua revolução. " 
        Em termos americano-latinos, Juan Emar, Leopoldo Marechal, Onetti, Lezama Lima, são conceituados como escritores que, além dos mais conhecidos, quebram a sintaxe narrativa desarmando os dispositivos construtores dos a prioris que concedem sentido à experiência, para lograr apresentá-la caótica, assim como é: "Pode-se então, concluir que o anti-romance latino-americano é uam tentativa de desarmar a narativa para fazem com que se encaixe na desordem da realidade".
          Mas o Centro também exibe uma deriva da "anti -arte", só que não pela extrapolação em nível de códigos culturais daquilo que é , e sim pela ruptura da condição narrativa que articula estória e/ou discurso, em função de uma ausência radical do paradigma´(grande relato) determinista. Com o manifesto de Enzensberger, recusa-se a "literatura", para apenas transcrever-se a fala da realidade:  do marginalizado que grava seu depoimento autobiográfico ao escritor, por exemplo.
          O paralelismo dessas duas vias da recusa do Cânon torna-se agora o que pode levantar alguns pontos de interesse na apreciação da cena contemporânea do investimento estético.


       
          A concepção de Eça sobre o que distingue Realismo e Romantismo, antes coloca um problema do que uma solução. Segundo Eça, como se pode ler no texto citado em Enio Tavares ("Teoria literária"), Romantismo e Realismo tematizam a realidade circundante a partir da efetividade histórica presente.
         Conforme seu exemplo, ambos podem pretender transpor literariamente o encanto de uma jovem que efetivamente os escritores conhecem. Mas o escritor romântico iria idealizar a jovem travestida de personagem. Iria evocar símbolos místicos, esparsos na cultura do passado, para simbolizá-la. O histórico na acepção da efetividade presente se transforma no histórico na acepção do conhecimento do passado. O escritor realista, inversamente, iria observar o cotidiano da jovem para retratá-lo no romance. Faria dela o que me pareceu o exemplar de uma espécie, o indivíduo ideal de uma geração.
         Mas Hoffman, o referncial conspícuo do Fantástico Romântico, como se sabe, foi processado exatamente por fazer isso. O ridicularizado personagem Knarrpanti, de Mestre Pulga, foi objeto de processo judicial contra o autor, por parte do agente de polícia von Kamptz, que se julgou pessoalmente caricaturado.
          O ponto do processo, como prova de que se tratava desse oficial de polícia como o retratado no personagem, foi a utilização de textos de documentos oficiais escritos pelo próprio agente de polícia, a que Hoffman tivera acesso por ter trabalhado na comissão consultiva de Berlim desde 1819.
        Hoffman seria sem dúvida condenado, como já havia ocorrido em 1802 quando entre ele e Johann Schwarz, ambos suspeitos de serem autores de desenhos caricaturais comprometedores de altas personalidades, tornou-se notório ter sido ele o autor. Mas já doente a essa altura, não sobreviveu ao processo.
       O caso se desdobra a partir da politização de Hoffman, dado a reviravolta provocada pela instauração das políticas conservadoras do Congresso de Viena, sob as alegações de serem medidas anti-napoleônicas. Ocorre a luta entre os aparelhos repressivos da política de Metternick e as ligas estudantis defendendo ideais liberais. Censura, detenções ilegais, “todo um tecido de arbitrariedades terríveis” como na expressão citada de uma carta de Hoffman a Hippel, datando de 1820, haviam se tornado atributos das ações policiais que Hoffman a essa altura estava antagonizado como ao “desacato insolente a todas as leis” desse tecido que havia se tornado uma trama de “inimizade pessoal”, envolvendo instituições públicas, estudantes e intelectuais.
       A ridicularização de Knarpanti é assim pontualmente histórico-efetiva, mas a partir do foco no presente, e instrumentalmente constituída pela sobreposição de textos.
         A interpretação do pós-positivismo como retorno do Romantismo, por Michal Lowi (“Romantismo e messianismo”) e mais geralmente de um fiat romântico percorrendo todo o século XIX a partir da motivação revolucionária, enfoca essa relação do escritor com modelos extra-literários reais. Nessa concepção, trata-se de uma weltaunshaung contraditória, por que a partir da crítica social anti-capitalista, não pode deixar de ser uma crítica da modernidade, tornando-se incapaz de decidir-se entre ser anti-progressista ou, pelo contrário, revolucionário.
         Tenho tratado esse paradoxo como algo que ao mesmo tempo decorre da modernidade, portanto expresso como o leitmotiv do Romantismo em seu empreendimento de auto-posicionar-se, e que não pode ser contínuo por natureza em sua expressão, uma vez que as condições históricas diferentes como segmentações de momentos modernos não podem ser abstraídas.
         Assim como demarquei acima o fato da inexistência dos determinismos realistas na linha tradicional do romance romântico, ou ausência do descentramento cultural no Realismo. Mas como venho enfatizando, essas mudanças são relativas à latência de um mesmo processo que permite esclarecer a ambiguidade. É o processo de uma inteligibilidade teleológica, que deve preservar o discurso da superioridade ocidental, acima das mudanças históricas que desde o Saber da margem implicam com a impossibilidade desse discurso.
          Enquanto tal podemos ver a ambiguidade encenar-se na instalação Fall'91, de Charles Ray, em que há um manequim feminino “dressed for success” , com blazer e saia, mas em tamanho gigantesco tal que invade a consciência do espectador como uma experiência crucial do poder.
        Pois, de fato, a intencionalidade do ato de vestir feminino “for success” tem se tornado cada vez mais ambíguo, entre o modelo da executiva da grande cidade qualquer desenvolvida, e da mãe comunitária enraizada localmente, o que é marcado pela onipresença da saia nestes dois referenciais no entanto tão aparentemente antagônicos entre si. Em todo caso, seja como elite do poder empresarial de antes da deslegitimação (“globalização”), ou como status-papel fascista da mãe na comunidade, trata-se da ambiguidade do Poder e da contestação, posto ser “mulher” o estereótipo do oposto do poder, por outro lado o mesmo se podendo afirmar para a imagem da sociedade liberal ou para a arte, e aqui, ao que parece, estarmos tendo a experiência mesma do Poder quando se trata de todas estas fórmulas de identidade.
           A figura do revolucionário conservador é também modelada da expressão de Martin Buber para definir a atitude do seu amigo Gustav Landauer, como reporta Lowi. Tona-se a partir daí uma questão importante ventilada por Lowi, quem é o modelo real de Thomas Mann, Bloch ou Lukaks, para o personagem Naphta de A montanha mágica – personagem epítome daquela contradição. Indagado a propósito em entrevistas, Mann foi ambíguo. A opinião de Lowi é que se trata de Lukaks.
          A temática de uma “arte relacional” pós-moderna, onde uma participação do público é estrategicamente calculada como inserção da presentação da instalação, me parece obter aí um foco temático. A espessura do procedimento literário ou estético é levantada, torna-se factualmente visível o atuante extra-estético.
          Mas a meu ver, a espessura não é verdadeiramente deslocável. O que ocorre – por exemplo, quando se presentifica na instalação um restaurante tailandês, e o público recebe pacotes de sopa ao visitá-la, como na obra de Tiravanija, continua sendo reprodução do modelo extra-literário, radicalizada em plágio do cotidiano. As propostas da “arte relacional” pretendem precisamente extrapolar a reprodução – como na artista que se envolve inencionalmente com pessoas reais, de modo que o que ocorra na interação venha a ser o material narrado do projetado livro.
          Já deve ser, portanto, o material narrativizável a princípio, e a proposta é que a arte se torna um veículo da ação da artista na vida dessas pessoas como o que neutraliza ela a sensação de inutilidade pessoal. A artista lava a louça, faz outros serviços, ouve problemas, etc., para essas pessoas que consentem que atue junto a si. Mas se há um produto estético, ele não se limita ao procedimento da reprodução. É a reprodução ela mesma. A espessura é problematizada, mas não pode ser levantada.
          A obra referencial da arte relacional é o Untitled, de Gonzalez-Torres – em que uma pilha de bombons é instalada na sala de exposição, de modo que o público fica com a opção de pegar um bombom, ou não, mas se todos pegarem a obra se exaure – expressa-se a meu ver esse paradoxo da forma, se bem que outros tenham interpretado que os doces estavam ali para que o público os pegasse como um brinde.
          Além disso, a transformação do espaço da instalação em espaço de festa, como num outro tipo de proposta, mas na mesma linha, parece-me do mesmo modo ambíguo. Em Gonzalez-Torres o desfazimento da cisão entre espectador e objeto estético é inequivocamente político, dado a sua participação na luta contra o preconceito ao homossexual, mas de fato, quem frequenta, quem pode frequentar, a festa? Pelo que apurei do comentário sobre isso, assim salvo engano, ela é organizada de antemão a partir de convites numa rede de conhecimentos sociais a partir da subjetividade do artista que desse modo elide o acesso do público qualquer ao espaço público da galeria de arte.
          Na verdade, o problema do assédio à vida privada se tornou agudo na atualidade a partir da informatização midiática do cotidiano, e se tenho denunciado os abusos – até a tortura psicológica – nesse sentido, o triste acontecimento do fatal acidente da princesa Diana provocado pela perseguição de um jornalista, ou o acosso da imprensa a Michael Jackson com as consequências que se conhecem, já demarcou a fronteira pela qual o que era antes apenas um assunto estético se tornou um problema político.
        Parece-me que se continuar havendo contestação política (“humanidade”), ela deverá abarcar a estratégia de se obterem provas da invasão de privacidade para constarem em processos cada vez mais rigorosos contra esses gêneros de neofascismo. Obviamente não era o que os artistas tinham inicialmente pensado, mas onde se poderia estabelecer a fronteira entre o consentimento e a invasão, a comunicação de massas abstraiu como questão a partir do poder do "late capitalism". Aqui devemos notar como Jameson realmente não chegou a explorar essa problemática, visando a pós-modernidade como uma caída da linguagem na auto-referencialidade mais reificada, tornando-se autista ou fixada numa cena única do passado.
        Mas já por esse modo como conceituou o investimento pós-modernismo na forma pura, em vez da construção do sentido, podemos notar como foi contraditória. Pois, se a esquizofrenização nada mais é do que  uma lógica cultural, a do "late capitalism", como pensa Jameson, isso não poderia ser esquizofrenia, tão somente seria uma paranóia.
           E a forma pura na arte é o que precisamente Eça pensava ter sido elidido com o Realismo, a partir da transparência do real a si mesmo, uma vez apenas dada a efetividade do modelo. Esse viés obteria sua epítome em Truman Capote, a meu ver, a obra motivadora da Anti-literatura de Enzensberger, em todo caso considerada sua precursora.  Mas essa anti-literatura que consistiu, antes da proposta da arte relacional, naquela da transparência do depoimento – nada a formalizar, somente a transcrição das revelações gravadas de alguém falando sobre sua situação de marginalizado ou transgressor, ao escritor que grava – seria então a consequência impensada do Realismo, como a solvência da arte na sociologia, em vez de alguma possível  programática estilística.
         A anti-literatura de Enzensberger e Martin Walser, inspirou-se  no jornalismo de Gunther Wallraff que escreveu novelas-reportagens a partir de sua infiltração clandestina como empregado em fábricas, escritórios, hospitais e manicômios, com a finalidade de recolher material, segundo Carpeaux. Mas um relato desse mesmo procedimento de infiltração é referenciável na sociologia assim designada empírica, como reportado em “Métodos de investigação sociológica”, de Peter Mann.
        O pós-modernismo como vimos, não investe como conceito crítico essas linhas da anti-arte ou da solvência da fronteira entre obra e público. Pode ser que, inversamente, o que esteja sendo ora criticado, ora valorizado, conforme a índole do crítico, seja o fato de um retorno da estetização da linguagem literária que, não obstante as questões terminológicas, era o que estava em jogo nas derivas recentes da literatura americano-latina. Um limite poderia ser estabelecido então, a partir do que é investido na estetização - como já observamos, entre a memória e o (inter)-texto, entre o desfazimento ou pelo contrário, a explicitação do cânon. Em todo caso, um elemento de desconstrução parece comum a ambas as derivas, não obstante elas parecerem irredutíveis. A partir daqui examino esse elemento desconstrutivo na prosa de Doctorow.

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       06 / 11

    A literatura (norte)-americana tem sido tematizada como um locus específico no âmbito da teoria. Não sendo europeia, também não costuma ser inserida na contiguidade da  americano-latina. Doctorow insere-se nessa literatura sui generis, num momento em que ela está marcada pela viragem Pop a partir das experiências beatniks, a que se seguem publicações como a dele, que demarcam propriamente a rubrica do "pós-modernismo".
          Ou seja, a partir de uma experiência de ex-centramento cultural num sentido muito preciso - todo o intertexto ocidental,  judeu-cristão por um lado, filosófico-científico, por outro lado, se desloca pela referencialidade dos Sutras e textos orientais, entre o taoismo e o budismo. E pela imanência da multiplicidade de culturas que povoam a cena americana que não se confina territorialmente aos estados federados, mas abrange a heterogeneidade mexicana, sendo que no interior dos estados a realidade tematizada são regiões marginalizadas onde os negros e os imigrantes vem expressar-se.
            Vemos assim que não se poderia tratar a multiplicidade por um viés conceitual tal que a inserção histórica de seu tratamento fosse elidida. Deleuze, inversamente, tematizou a literatura norte-americana precisamente nesse sentido conceitual, sincrônico, estabelecendo em torno de uma noção geral de "minoridade" - e sua profusão no continente a partir do emblema da América como a terra da promissão para onde vem os imigrantes de vária origem - o que seria a necessidade de uma concepção alternativa do inteligível.
         Aqui teríamos, em vez de um universal cujo referencial é uma coisa única, uma noção de nacionalidade e/ou de cultura cujo referencial é múltiplo. Mas assim procedendo, Deleuze não percebe que está se enredando numa contradição performática, posto que ele já totalizou a experiência norte-americana da cultura, assim como além dela, a condição de minoridade, independente da singularidade das culturas que assim foram sem mais enfeixadas num parâmetro de igualação de si.
        Isso fica nítido no seu artigo sobre Whitman, constando em "Critique et clinique", onde nada menos que toda a literatura norte-americana se vê tratada como conceitualmente redutível à produção de Whitman, ou seja, definível como "fragmentária" por oposição à europeia que seria "totalizante". A americana é feita de fragmentos, a europeia se faz como "composição" una, mas cada um desses referenciais persegue como objetivo seu o que o outro já tem, ainda que a noção assinale a cada um deles seu limite intransponível.
            Nessa redução, por um lado trata-se da multiplicidade da minoridade - lembrando a famosa fórmula da América como colcha de retalhos - mas por outro lado, tratar-se-ia da whitmaniana ausência de oposição entre natureza e cultura/humanidade. Do mesmo modo, minoridade implica ausência de oposição público-privado, e em vez do indivíduo a literatura expressaria somente a coletividade, como a condição dele.
         Celebrando como algo positivo essas características, mas sem precisar o que se está entendendo - em Whitman ou no próprio Deleuze - como "natureza" ou "homem", chega-se ao seguinte parâmetro: "É uma literatura popular, feita para o  povo, para o 'homem médio' como criação da América, e não para os 'grandes indivíduos'. E, deste  ponto de vista, o moi dos Anglos-Saxões, sempre estilhaçado, fragmentário, relativo, se opõe ao Je substancial, total e solipsista dos europeus". Assim, a multiplicidade já não subsiste - trata-se como literatura norte-americana, unicamente a dos "anglo-saxões".
          Quanto à "natureza", de fato Deleuze não apreende o que me parece típico da mentalidade do pioneiro que se expressa em Leaves of Grass, o que tenho aproximado ao prefácio de Jose de Alencar ao seu próprio Sonhos d'Ouro.
       Há aí uma ambiguidade notável, na medida em que tanto Whitman quanto Alencar, não colocam numa base comum os elementos heterogêneos que compõem o extrato da margem enquanto nacionalidade pós-colonial. Mas nem por isso eles se eximem de estar poetizando uma nacionalidade no momento de afirmar-se independente, isto é, uma singularidade que deve abranger o que recalcam, o aborígine, enquanto não redutível à outra - a singularidade única europeia do colonizador.
         Bem inversamente a colocar numa base comum os elementos heterogêneos, Alencar associa o aborígine à natureza, ao solo ou  território, e é por assim poder fazer que o aborígine pode ser expresso como um dos referenciais da singularidade nacional cuja composição é tal que o português colonizador é que efetivamente a realiza enquanto associado à cultura, ao trabalho, ao cultivo desse solo e desse território. Whitman não o expressa  - não há lugar para o índio entre os vários elementos que compõe a cena social de Leaves of Grass, intensamente nacionalizada. Mas ele assim procede  justamente pela mesma associação da singularidade do elemento da realização da nacionalidade com o fazer do pioneiro: desbravamento e cultivo de um território até aí puramente natural.
          Ora, na Europa o Romantismo como emergência do Sujeito pensável, implica a emergência da história como horizonte da heterogeneidade formativa de uma nacionalidade tal que não mais pode haver esse abismo entre cultura e natureza.
         A transformação do Saber subjacente à emergência do Sujeito pensável é a correlata emergência das "ciências do espírito" - o que hoje designamos as "ciências humanas" - que deslocam a filosofia como horizonte teórico único dos problemas que agora cada uma vai tratar como exclusivamente seus, uma vez que o referencial em que os enraíza ao invés de uma ontologia são as informações empíricas ou históricas relativas somente ao seu campo fenomênico.
       A história como ciência se torna o marco da transformação no Saber de que as humanities emergem. Até hoje, a partir daí, se pratica a oposição entre "história como ciência" e "história erudita". Esta é o prolongamento do exercício da história como era feito antes de Herder e Ranke, isto é, antes do século XIX, quando metodologicamente não tinha alguma irredutibilidade em relação a um exercício textual com vistas a certas deduções moralizantes - tratava-se de uma narrativa. Aquela se torna científica a partir da circunscrição documental do seu material e explicitação dos métodos de interpretação utilizados desse material.
       A oposição ainda hoje é polêmica. Toda escola de historiadores inovadora vota seus predecessores à rubrica de "eruditos" - como a "história das mentalidades" considera a minúcia objetivista dos historiadores positivistas. Há por outro lado, simpatias para com a erudição.   Rostovtzeff escreve um prefácio à sua História da Grécia onde registra que a considera uma obra mais erudita do que científica, porque tratou o texto como uma composição em vez de como um trabalho acadêmico onde cada citação deveria estar acompanhada de notas bibliográficas.
    Mas o que temos a notar é que desde Herder a história se torna um locus referencial em humanities a partir da solvência do universal-factual em se tratando de acontecimentos humanos. Assim, especialmente devemos lembrar que Herder está opondo-se frontalmente à filosofia da história kantiana.
         Os acontecimentos são culturalmente circunscritos, e a diferença na cultura implica o enfeixamento propriamente histórico - nessa nova acepção - do fato no acontecimento que deixa assim de ter um significado meramente referencial que responderia à indagação "o que aconteceu", para ser posicionado estrategicamente num processo de sentido a partir dos valores que atualiza na cultura.
          A singularidade da nacionalidade, formada no bojo da heterogeneidade específica de culturas que se amalgamam no seu processo de formação, é o que impede que a história permaneça no âmbito do fortuito ou seja solvida num relato kantiano de mera trajetória inteligível onde os fatos em si não importam. Pois, não há mais fatos, só interpretações - como depois afirmará Nietzsche. Não há significação além da singularidade cultural e linguística em que algo é expresso.
        O inconsciente não é realmente uma invenção da psicanálise. Ele é expresso conceitualmente no Romantismo como história da formação do Eu na singularidade da cultura que se pensa por sua vez, mediada esteticamente a partir dessa historia.
         Aqui ocorre algo espantoso, pois se há alguma coisa em comum ao estruturalismo e pós-estruturalismo, é a premissa de que para o bem ou para o mal o inconsciente é primeiro psicanalítico e por outro lado, entre o período absolutista e colonial  (sécs. XVII e XVIII), e a sociedade capitalista (desde o sec. XIX),  não deve ter havido uma ruptura tal qual os fatos autorizariam supor. 
          Mesmo assim, também é comum a ambos o locus da crítica ao Romantismo como lugar de uma enunciação ingênua, insuficiente ou comprometida com o mesmo princípio “metafísico” do período anterior, do desejo em termos de uma teoria do Eu. A interligação de Sujeito, história, cultura e sociedade, como referenciais de ciências independentes, está atuando na substituição do Estado conceituável nas teorias do contrato social pelo Estado constitucional de direitos da nação contemporânea.
        Foucault não apreende assim o que é essencial na transformação política (governamental) entre os dois períodos considerados, a saber, o fato do direito deixar de ser uma lei diferenciada conforme a coletividade a que se pertence por nascimento – nobreza, clero ou plebeu - para se tornar uma lei cujo referencial é o sujeito individual, como lei igual para todos os sujeitos da nacionalidade individualmente considerados.














       Pensava, inversamente, que se tratou de uma transformação do governo tal que deixou de ser o zelador dos direitos para se tornar mero gestor a partir do deslocamento decisório à ciência da economia.

          Mas Foucault também não apreende que quanto à economia, sua história ao longo do século XIX foi a de uma progressiva inviabilização de si como base de grandes relatos sociais, como demonstrou Myrdal. Mesmo na sua fase clássica inicial, excetuando a problemática marxista, a economia não foi mais que uma entre as várias fontes de informação a ser julgada quanto à pertinência das políticas efetivamente adotadas.
       A transformação do Saber que assinala historicamente a emergência do Eu ao campo do pensável abrange a emergência da Biologia. A transformação do Saber que assinala historicamente a emergência do Eu ao campo do pensável abrange a emergência da Biologia, a partir do transformismo. Aqui é Derrida que não apreende a transformação decisiva, pois de fato não se trata em Hegel de alguma continuidade da ambígua oposição rousseauísta entre natureza e cultura. O transformismo de fato impede toda metafísica anterior ao implicar o pensamento de uma ação inteligível imanente à natureza.
          Mas assim o primitivo surge como o novo referencial da ambiguidade, entre a biologia e a história. O Centro se estabelece como tal, geopoliticamente, a partir do fato de si como sociedade histórica. Ao mesmo tempo que em ruptura para com o passado clássico, o futuro desse passado em termos do progresso do Saber que inaugura o novo entendimento de si, pós-metafísico. Mas fora desse passado estão as sociedades não-ocidentais que o outro progresso, o do Poder, está implicando como objetos da modernização civilizadora a partir do Centro. Entre o primitivo e o ocidental há uma questão biológica e racial, não se trata do mesmo conceito histórico que rege a relação do bárbaro ao moderno ocidentais.
            Na margem o primitivo deveria ser o elemento de ligação da singularidade local assim como o bárbaro europeu em relação à nação moderna, mas se a nação independente não pode ser conceituada senão a partir do parâmetro da nação ocidental, o capitalismo incide como progressiva transformação da livre empresa comercial em imperialismo, e a estratificação local não pode ser historicamente desenvolvida em função da heterogeneidade efetiva, posto que a classe dominante responde apenas à armação do Poder da potência imperialista atuante – a Inglaterra. A expressão de classe na cultura torna a esta, inversamente à pesquisa empírica da heterogeneidade, o distintivo da pertença racial evolutiva.
         Onde isso não ocorreu, nos Eua, devido à Guerra da Secessão, os agentes históricos não estão menos extratificados pela mesma segregação. O cristianismo e a racionalidade formam um mesmo circuito político-cultural que delimita o contorno interno da nação pós-colonial de modo tal que ela não é uma transformação do direito a mesmo título do que vimos acima ocorrendo na emergência da nação contemporânea europeia.
         O uso do relacional centro-margem se torna a partir daí efetivamente indeslocável, se bem que não expresso até a atualidade. O Centro existe a partir do Romantismo hegeliano, como auto-conceito a partir de si como agente histórico tal que toda agência histórica é e só pode ser uma repetição (cópia) dele em termos de acesso à nacionalidade constituída.
         A partir do Romantismo, como já assinalei, o capital-imperialismo recalca toda teoria e prática da livre empresa na Europa, ao passo que a economia se torna monopolista, na base dos conglomerados (carteis, holdings, trustes), até se tornar a multinacional da atualidade. É então que as ciências do espírito se transformam em grandes relatos cujo escopo não é a restauração da Representação unívoca da época clássica, mas a conceituação da evolução social – a definição do não-ocidental num parâmetro único tal que o ocidental seja o único agente histórico, por um lado, mas o não-ocidental o anteceda evolutivamente, por outro lado.
         A perversão se instala a partir de que a repetição de fato da















história do progresso do Centro, a que os grandes relatos que lastreiam a modernização como sinônimo de história, o centro mesmo impossibilita na prática posto que por outro lado, não continua a ser Centro senão por uma assimetria que impede a margem de se tornar independente, econômica ou politicamente, conforme o caso, da dicotomia na qual está tomada de forma desvantajosa para si.

           O terrorismo patrocinado pelas potencias centrais na margem e o absurdo de que se estava falando acima, na America Latina, lembrando que naqueles anos setenta, o genocidio estava ocorrendo pelo intervencionaismo norte-americano que havia instalado as ditaduras militares localmente, posto que mais um ciclo de progresso havia sido cumprido e ja haviamos articulado governos representativos o bastante para decretar, como Jango, a reforma agraria e a equipara;ao digna do salario minimo


             os leitores devem observar que a ausencia de assento nas palavras nesse trecho esta sendo devido a defeito no meu teclado provocado pelo blogspot, ja que nao afeta o uso fora da internet  - esta aqui registrada o unico tipo de contribui;ao na cultura de que poderia se orgulhar o expert de computadores
                 para evitar o ~verme~, so utilizando o processador e transladando o conteudo.
             

             Ou seja, a repetição é feita somente na cultura, estruturando a dependência como circunscrição da racionalidade à cópia do Centro em termos, por outro lado, muito reais de perpetuação dos laços do empreendimento modernizador protagonizado pelo Centro, que quando estudados se revelam dispositivos intrínsecos à exploração econômica da margem pelo centro.
        O absurdo não é só a história do escravismo moderno nessa “margem” assim marginalizada, sempre no entanto conceituado como feudalismo local ou acumulação primitiva europeia – sem conceito para o fato real nas teorias que se utilizam habitualmente. Mas continuarem tais teorias a tratar os dispositivos dessa exploração do capital-imperialismo como irrelevantes à economia que elas devem explicar, a do Centro.
          A partir dos inícios do século XX, a oficialização universitária da filosofia, junto à difusão do marxismo, implicou séria descontinuidade na intercomunicação cultural letrada que fora típica desde a independência, num parâmetro de oposição ao império. Com a oficialização, o curriculo tornou referencial a história da filosofia europeia, que até aí era a base da interlocução local, mas não o seu limite conteudístico. O achincalhe da produção local tornou-se o lugar comum universitário.
           Ora, a posição frente à história mede a dispersão dos efeitos da assimetria internacional do capital em termos da distribuição de centro e margem. O centro faz a história enquanto produz sua cultura. Na margem, a cultura oficial do Alter ego do centro se coloca como o fator que vai detonar o processo histórico, a cada vez, como aplicador local da nova verdade produzida pelo Saber do centro.
             Na medida em que esse intelectual desconhece a produção local, seu exercício é na verdade a-histórico. Tudo o que pode fazer é assimilar como lição o desenvolvimento dos problemas internos à sociedade europeia e estadunidense, tentando tirar dele alguma lição de moral universal. Ele não se situa em função dos problemas de sua própria sociedade. Pelo contrário, impede que se os dê a conhecer, pois sua função - como considera - é separar o joio do trigo, o que é relevante porque vem do Centro, e o que não tem relevância, absolutamente tudo o mais.
           Pela altura do governo Jango, e ao longo da resistência à ditadura, antes da Globalização, a maturidade política havia sido conquistada, com envolvimento intelectual na cultura local e multiplicidade de investimentos criativos. Compreendeu-se a necessidade de formular categorias próprias para o que são produções heterogêneas, não modeladas pelo cânon ocidental.
         O espantoso recrudescimento da repressão cultural na Globalização - oficialmente o país estando redemocratizado - tenho insistido que precisa ser estudado sociologicamente em prol do interesse internacional de evitação do alastramento do neofascismo, mas havendo expressa evidência de que este triste fenômeno não pode ser considerado sem conexão com o capital neoliberal.
         Aljaz Amahd, criticando a tese de Jameson para afirmar que não há ausência do split de público e privado na Índia, conta a história da modernização local, mas tudo o que reporta é a cópia eficaz do já feito na Europa como receita de modernização -  aburguesamento ocidentalizante da literatura, capitalização da economia a partir do modelo ocidental.
         O conflito cultural na margem, a partir do achatamento da cultura oficial a exclusão do que não é a cópia do já feito ocidental, não existe no seu relato, assim como tampouco a questão da dependência tecnológica que recentemente tem sido tematizado a propósito do modelo indiano de ocidentalização. Ahmad não entende como ocidental e ocidentalizado não são de fato a mesma coisa, não somam um mesmo efeito quanto ao seu processo histórico.
       Nos Estados Unidos, inversamente, as ciências sociais empíricas, em vez dos grandes relatos, foram impulsionadas desde a Escola de Chicago, se bem que numa base a princípio integracionista quanto à participação ativista. Booker T. Washington foi na verdade bastante beneficiado por sua associação a Robert Park, líder dessa “escola”. Em todo caso, desde essa época a mentalidade do pioneiro whitmaniana deixa de ser típica da produção cultural, e é somente então que emerge nos Eua a questão da multiplicidade na cultura.
             Ora, isso não quer dizer que a produção até aí se limite a essa mentalidade, seja nos Eua ou na América Latina. Inversamente ao que se propaga no Brasil, o Romantismo, por anteceder o positivismo como grande relato evolutivo é o locus de uma produção heterogênea teórica e literária, que permanece à margem da cultura oficial acadêmica – como tenho referenciado a importante formulação epistêmica e social de Antonio Pedro de Figueiredo.  O destaque de sua produção não implica escassez de nomes.
        Pelo contrário, como se pode ver em Bosi, Paim, Silvio Romero e outros historiadores da cultura, o Romantismo foi um momento de propagação cultural brilhante no país. Os movimentos de libertação nacional - em prol da independência - foram esclarecidos e se perpetuaram em lutas contra a usurpação dinástica patrocinada pelo dinheiro inglês também responsável pela cruel repressão a elas que culminou na execução de Frei Caneca. Os projetos autênticos da independência, aqui, a Nordeste (Bahia e Pernambuco) abrangiam a república e a democracia, com destaque para a participação heterogênea popular - não são modelados pelo movimento elitista de Minas que é o único que a história oficial tornou folclórico.  
          Mas no que tange à cultura oficial, logo a integração positivista vai reduzir a margem da originalidade possível, e é a partir da Escola do Recife e depois, com o Modernismo, que a questão da multiplicidade cultural reemerge.
          Vemos como ela depende, contudo, de contornar a inflexão dos grandes relatos. Kellner, explicando a originalidade de Jameson, posiciona sua perspectiva na diacronia, em vez da habitual sincronia estruturalista, e assim ele seria um pensador que volta a conceder importância à história. Especialmente, visou transcender o cânon da alta cultura e tematizar a produção cultural de outros textos como filmes, televisão e propaganda.
             Contudo, ao observarmos o modo como Jameson só o faz para homogeneizar o resultado “cultural”, podemos notar como isso se contrasta a uma investigação como a de A. Blum nos Eua, nos sixties, especialmente voltado ao que ocorre com um setor do público incompatibilizado a priori com os conteúdos da mídia, como era o caso dos telespectadores negros pobres. 
          Seu artigo intitulado “A tipologia do jogo a dois aplicado às comunicações de massa” ressoa com a fórmula geralmente aceita em sociologia e antropologia social, de que pessoas que pertencem a extratos sociais diferentes, quando há dominação de grupo, representam diferentemente o mesmo espaço social. Aqueles que pertencem ao extrato marginalizado representam o espaço dividido em dois segmentos, enquanto os que pertencem ao extrato privilegiado representa um espaço único, englobante de todos os segmentos.
         Então parece claro o que sugere o título, o jogo da televisão se tornando a dois, se o público não se identifica como integrante do mesmo universo dos apresentadores e ambientes dos programas da televisão. Ora, o que se descobre é que os negros desenvolveram uma atitude humorística que transforma o apresentador num interpelado por suas piadas e brincadeiras provocativas potenciais, as quais são deslegitimadoras do status paradigmático do apresentador. A essa atitude Blum designou “ ceticismo pseudojovial ” , interpretando-a como na verdade uma “hostilidade fundamental” que não acarreta por outro lado, uma deserção do telespectador.
             O ceticismo pseudojovial é uma aplicação sugerida por Blum ao caso do telespectador incompatibilizado, da relação sociológica descrita por Radcliffe Brown, como entre pessoas com interesses divergentes na sociedade “"primitiva” que estudou. A situação encontra um meio termo a partir de ser conduzida à base de gracejos sempre tendentes a degenerar num ritual sancionado de insultos e zombarias. Conforme Blum “assim, o telespectador tenta resistir às tentativas dos 'mas media' para mobilizar suas aspirações, sua confiança, sua lealdade, a serviço de objetivos que considera hipócritas e ilusórios”.
















           Ora, a partir daí a dedução de Blum é que o telespectador que zomba e que – ou porque - espera ser objeto de zombaria, desenvolve aquilo que nós podemos aproximar ao que era o objetivo dos grupos de vanguarda obter do seu público, o burguês habitual dos teatros caros, antagonizado, a saber, nas palavras de Blum, “ele realiza um distanciamento considerável.”

            Kellner reporta que Jameson investe a história, mas que conceito de história, não o esclarece. Afinal, após insistir algumas vezes nesse termo, revesa-o com a expressão "teoria da história", para referir-se ao marxismo.
           Um outro problema que me parece relacionado ao modo como Jameson alinha como produção cultural tanto a estética letrada quanto a comunicação de massas, é que sendo assim ele não esclarece concepções sobre esta última, as quais tornaram-se basilares quanto ao tema. 
         A princípio, ele não esclarece precisamente de que modo pensa as conexões de cultura letrada e mídia.  Há também uma decisão incontornável quanto a mídia que é de fato teórica. Trata-se de estipular como estamos entendendo a produção de massas em termos do seu endereçamento ao público, o que nela é decisivo de um modo que na literatura, por exemplo, não é. Assim, há um leque de opções.
          Entendemos o endereçamento midiático por meio de uma aproximação "demagógica", de modo que pensamos que ela só veicula o que supõe ser do agrado do público porque, basicamente, é um empreendimento lucrativo que depende do patrocinador? Ou, inversamente, por meio de uma aproximação "dogmática", pelo que definimos uma cúpula do Poder que dirige a programação conforme seus interesses exclusivos -  capitalistas ou fundamentalistas, etc. ? Há ainda a teoria da circulação cultural, pelo que a mídia interage bipolarmente com a produção estética, num sentido aplicando-a na sua linguagem, num outro sentido tornando-se assim um canal que direciona tendências daquela produção.
            Várias outras formas teóricas existem, e atualmente creio que seria importante notar que  essas formas podem coexistir, parecendo-me que as tres mencionadas são mais referenciais. Tem sido notório que a linguagem da comunicação local de antes da "globalização" veiculava-se por valores maduros, politicamente corretos, de um modo que se tornou impossível desde aí.
           Comportamentos aberrantes, muito infantilizados, tornaram-se comuns de forma que um analista da cultura local poderia diagnosticar uma sociedade muito diferente do grau de esclarecimento em que se encontrava aquela de antes dos anos dois mil. Poderíamos afirmar que transitamos de uma época em que predominava a circulação cultural para a atualidade onde alguma forma dogmática está se exercendo?
          Como  exemplo da tremenda regressão psíquica, há alguns anos houve até mesmo a associação de sexo e comida, com modelos de revistas masculinas sendo investidas de um modo mais chamativo que o habitual, mas com seus nomes trocados por "mulher-" o complemento sendo um nome de uma fruta ou de um prato. O neofascismo se instalou com a globalização, e  para mim não há dúvida de que a mídia se tornou um espaço de invasão da vida cotidiana, com veiculação de violência e perseguições,  de forma intolerável. A impunidade, é claro, não pode deixar de ser apontada como o fator principal dessas práticas.
         Assim também poderíamos colocar a controvérsia entre Lacan e Derrida a propósito da letra/carta, suscitada pelo conto de Poe, A carta roubada. Para Lacan, uma carta sempre chega ao seu destino, mesmo se desviada. Para Derrida, uma carta pode não chegar ao seu destino, pode ser destruída. Essa não poderia ser uma discussão trivial – pois só um louco não saberia que folhas escritas podem ser destruídas.

         Os termos da controvérsia foram tratados por Millner como um dos capítulos da famosa ojeriza de Lacan por Derrida e vice-versa, mas o que me pareceu notável é que nunca houve uma questãodo destino nessa discussão, posto que poderíamos sempre considerar surpreendente que a nenhum deles tenha interessado pensar o destino como algo que abrangesse, em vez de se opor fundamentalmente, ao acontecimento do desvio.

        A meu ver a carta/letra é uma inserção da questão cultural. Lacan como historiador da cultura, a reduzia à Ocidental – posto que o não-ocidental não tem história. Mas como tal a cultura é sua história, e em todo caso nenhum signo transita sem um caráter necessário que irá repercutir no todo. Derrida, como pensador da margem, situa a cultura na contingência do múltiplo e da contingência opressiva que a colonização representa como possibilidade real de extermínio. Mas Derrida perseverou na concepção do próprio Ocidente como um grande

relato da metafísica (logocentrismo).
           O texto de Doctorow coloca a problemática da história numa inserção com sua grafia =  os personagens históricos se misturam numa amostragem do que seria a época do Ragtime, um tipo de música popular. Mas a multiplicidade cultural chega a interferir com a continuidade da história possivelmente transformada num relato. Esse relato é o que devemos em seguida tematizar na sua característica problematizante de algum conceito de “texto”.

                                                        ===========


07 / 11

     Nas teorias do contrato social, entre os séculos XVII e XVIII, portanto entre Hobbes e Rousseau, o selvagem tem um mesmo lugar estrutural do discurso que o sujeito na filosofia assim chamada "moderna" em sentido estrito, portanto entre Descartes e Kant. Tanto o selvagem quanto o sujeito precipitam o pensamento, mas não precisam ser pensados. Eles explicam, mas não precisam ser explicados. 
           O bom selvagem não é uma invençaõ rousseauísta, e sim do Locke do segundo tratado sobre o governo. Vivendo em estado de natureza, o selvagem não precisa da sociedade. Ao contrário de Hobbes, desde Locke a sociedade só é a cura de um mal porque esse mal adveio após a origem, sendo estranho a ela. O mal, o conflito de interesses ou o que hoje consideraríamos a história, não é a racionalidade, nem a natureza. A racionalidade é a sociedade como a cura do mal, a natureza é a ausência do mal.
           De certo modo o conflito de interesses ocorre devido ao que o ego Cogito cartesiano só tematiza para colocar precisamente nesse estatuto do impensável, o sujeito empírico, o que não se define imediatamente como a coisa pensante (res cogitans), ou intelecto puro, racionalidade pura. 
            Ora, a ruptura romântica - e já vindo desde o que provoca a emergência da economia liberal de Adam Smith - se precipita pela evidenciação do selvagem na margem como agente da transformação social a resultar na independência, no estatuto nacional pós-colonial. O discurso da assimetria colonial em que coalesce na Europa a ciência empírica da natureza (pós-metafísica), não pode mais, portanto, conservar a ambiguidade da origem.
        A história como ciência, e a mediação estética (cultural/subjetivo-dialética) da história, entre o pós-kantismo (Hegel, Schelling, Fichte) e o pensamento francês que foi ao mesmo tempo berço da psicologia como ciência do Eu (Biran, Cousin, Joufroy), respondem a necessidade de conceituar essas duas realidades antes impensáveis, agora fatos evidentes: a ação imanente da natureza (biologia) e a ação imanente da história (ciências humanas).
            Após o interregno do positivismo e marxismo, o cenário do nascente funcionalismo em inícios do século XX, onde vamos encontrar a cena de Ragtime, é um recuo espantoso em relação à visibilidade da margem. A emergência da psicopatologia, em que a psicanálise coalesce como apenas mais uma escola, não de fato como a origem da problemática,  como podemos ver na resenha de Wallon a propósito, testemunha de uma problemática do Eu anti-romântica por enraizar-se no que se designa agora o subconsciente - a fisiologia do cérebro - de modo que o que se quer apreender são os mecanismos que suportam a formação da personalidade a partir de uma psique não originariamente subjetivada.
            Que o ego só tem vigência desde os tres anos de idade, não é descoberta psicanalítica, mas dessa nova psicologia nascente em inícios do século.  Assim, o que passou a importar - não somente a Freud - foram os processos intrapsíquicos de que o Eu é efeito, não podendo ser considerado causa. Não há de fato uma psicologia do eu nesse sentido substancial do termo, desde inícios do século XX. Por outro lado, nela é assente que o selvagem ou primitivo não tem subjetividade formada: todos os seus gestos e processos psíquicos são supostos "coletivos". 
          A psicanálide freudo-lacaniana é um discurso que depende estruturalmente   dos pressupostos das ciências sociais de inícios do século XX, em relação as quais nós hoje não podemos nos considerar seguidores, pelo contrário. Mas inclusive o pós-estruturalismo, não se havia renunciado - como tenho insistido - em alguma forma de grande relato ou de grande teoria que explicasse além dos estudos especializados de cada sociedade, um estatuto ontológico ou psíquico do não-ocidental em geral, nessa condição suficiente dele não ser subjetivado. Sendo que a problemática do Sujeito que havia nascido no Ocidente nessa relação intrínseca a ele mesmo enquanto alteridade atuante, foi nesse ínterim transformada de um modo tal que se a explicou na origem em função apenas da emancipação da burguesia.
          O recalcamento não foi apenas do selvagem enquanto pensável ou problemática cultural a pensar, mas  do agente histórico da transformação social no Centro, a pequeno burguesia, sujeito referencial da livre empresa que como objeto teórico da economia deixa de ter referencialidade desde Marx, mas propriamente desde a transformação em que coalesce o capitalismo contemporâneo, como monopolismo.
         A atualidade de um capitalismo tecnológico implica a deslegitimação por impedir a estruturação da margem como cópia ou geoegologia, processo emancipador a partir da repetição da história do centro, vindo de uma origem que o positivismo  - e assim, por um lado importa notar que esse não é o capitalismo europeu, mas que inicia sua hegemonia na América do Norte do pós-guerras, por outro lado, sendo consequência o retorno das terminologias de "iluminismo", "neobarroco", mais todo tipo de esforço no sentido de retornar à fixidez estrutural da cisão selvagem-ocidental das teorias do contrato social.
        Derrida notou isso com acurácia na Gramatologia, criticando assim o rousseauísmo de Levi-Strauss,  não por acaso sendo nessa oportunidade também crítico de Freud e Saussure, mas ele mesmo não provê uma teoria que preencha a lacuna entre o mero status de      uma escrita não-linear e as situações histórico-políticas extremamente variadas das sociedades que a praticam, e  evidentemente não como uma escrita única além de abranger nesse parâmetro quaisquer sistema de signos, inclusive o status imperial (Egito), paralelo ao de sociedades igualitárias (aborígines sul-americanos).      
        O capitalismo norte-americano e especialmente o referencial sócio-cultural americano colocam vários problemas não redutíveis ao cenário europeu, um deles a questão da importância da comunicação de massas. Mas o texto de Doctorow, se bem que lançado numa época ainda de predomínio do Pop onde essa questão é de importância capital, não me parece ter nela o seu ponto de ancoragem, e sim na quebra do paradigma da margem estruturante da vigência dos grandes relatos, inclusive pós-estruturais.
         Voltando-se ao cenário de inícios do século, onde esse paradigma estava se produzindo como as fórmulas da renovação das ciências que se entendiam  rupturas em relação ao século XIX, entre a ausência e a presença do laboratório em psicologia e do trabalho de campo em antropologia social e em sociologia, o texto de Doctorow coloca esse problema à análise, de uma atual  ausência radical de paradigma além do que é performatizado na própria atuação dos personagens daquela época.
          A questão é se eles mesmos, entre si, reunem ou não algo como uma "visão de mundo". Pois, por outro lado, a presença opaca do paradigma nesse interregno é ela mesma uma questão de enorme complexidade: o  trajeto real das ciências nesse ínterim foi empírico, e é esse trajeto que implica o desfazimento do paradigma atual. Estudando-o efetivamente, podemos constatar por exemplo, a total inadequação  aos fatos de um discurso como o de Foucault sobre as ciências humanas, além do que já assinalei quanto à estruturação da psicanálise,  mas em geral também assim para as grandes perspectivas como do Anti-Édipo, etc.
         Por outro lado a prosa de Doctorow relança o problema da literatura norte-americana em termos de "minoridades" -  agora como problematização do Sujeito, uma vez que pela ausência de paradigma esses personagens, cada um deles, não são mais do que o que eles mesmos na singularidade paradoxal da sua ilusão ego-totalizante. 
          Volto agora a posicionar o locus da literatura norte-americana, relacionando-a especialmente a essa problematização, de modo a ver se podemos constatar algo da emergência da prosa  de Doctorow na imanência em que se desenvolve. Assim, esses dois movimentos encerram o escopo da análise literária focalizada neste "blog". Espero, logo após, registrar algo dos meus estudos recentes sobre o trajeto das ciências humanas empíricas do século XX, ressaltando o contraste com o discurso psicanalítico e pós-esturutralista que assim veio a se tornar o que me parece um dos mais importantes aspectos da ruptura pós-moderna. (...).


         Algo que devemos notar também contraditório na perspectiva de Deleuze a propósito de Whitman, é a tópica do hegelianismo, que aqui se torna importante por que em termos de história da literatura, comunica a transição de uma estética em que a inserção do Sujeito contemporâneo se efetiva. Inversamente, como vimos, Deleuze conserva a literatura norte-americana aquém dessa ruptura, mas atribui a Whitman uma influência de Hegel.
          A literatura norte-americana antes de Whitman e independente dos realismos, como em Poe, manifesta efetivamente uma conexão à estética romântica que é preciso considerar  - e isso éstendendo-se mesmo à época de Baudelaire, lembrando que se Poe pratica uma interlocução teórico-crítica da estética europeia, alguns historiadores ressaltaram que o próprio Baudelaire é tributário de sua poesia antes que dos europeus.
         Não com alguma intenção especialmente procrastinadora, mas por se revelar oportuno ao andamento, introduzo antes do exame de Poe em conexão à tematização do Sujeito na Estética de Hegel, um exame sucinto da atual problemática teórico-crítica do Romantismo.

        = Romantismo, Ironia e Reflexividade


             A ironia dos românticos e o eterno retorno nietzschiano são modos de relação subjetivada com o tempo, isto é, são problematizações do tempo na perspectiva da contemporaneidade. O fator da subjetivação pode ser conceituado como reflexividade. O tempo reflexivo da ironia ou do retorno não é em si como uma categoria lógica ou como alguma realidade originária. É o que resulta de uma relação subjetivada/subjetivante com o presente que passa.
            O eterno retorno surge como uma retomada da problemática instaurada com a ironia romântica, mas de um ponto de vista crítico que assim implica uma concepção explicitada do objeto criticado. Nessa concepção, pelo que podemos haurir do que Nietzsche contrasta ao eterno retorno, a ironia era negatividade, o que poderia estar impulsionando o movimento dialético. Implicava, porém, a evidenciação da reflexividade. A ironia seria o enfrentamento da transitoriedade do devir, mas travestindo-o de expiação e culpa cristãs o irônico se tornaria a prática de uma negação consciente do devir do que foi. Voltava-se ao passado e lá fixava o desejo do que havia sido junto com o fato de não mais ser. Como se sabe, Nietzsche votava o Romantismo em geral e Hegel em particular como escolas da negatividade da vontade, de que o eterno retorno seria o saudável oposto.
           A culminância da ironia, reflexividade recém-descoberta ao conceito, viria com Schopenhauer. O desejo sendo o que trasporta o devir como subjetividade, a transitoriedade a confrontar de tudo só seria anulada por um ato de renúncia do próprio desejo, quando a transitoriedade já estava traduzida em mundo, o mal radical, na conhecida fórmula de vontade e representação.
           Mas podemos colocar em questão a identidade de ironia romântica e fórmula schopenhaueriana, assim como sem dúvida podemos submeter à crítica a leitura kierkegaardiana. Segundo Kirkegaard, trata-se de uma oposição básica que os românticos situam entre o exterior e o interior, e assim a ironia é a negação pura e simples do exterior. Por isso, o momento irônico é apenas o ético, não chega ao religioso ou propriamente subjetivo na acepção kirkegaardiana desse conceito.
            Aqui o subjetivo não devia ser o eu para o eu, mas a descoberta do eu para Deus – como Abraão em seu processo de entrega e recuperação do filho pelo movimento da fé infinita, se torna o que ele é nessa história de sua relação com a vontade de Deus em relação a ele, história que se resolve como uma comunicação real, intersubjetiva, entre criatura e Deus.    
     ParaKirkegaard a mera informação jamais será verdadeira comunicação, e a história da submissão do pai de Isaac é o que ilustra a verdadeira comunicação como intersubjetividade, uma vez que transformadora do simplesmente dado em subjetividade do eu, por outro lado sendo o autêntico religioso que jamais será informação de um dogma a alguém, mas experiência espiritual formadora de si. Então a ironia seria a negação do mundo pela absolutização de um eu ilusório, que apenas se pensa dado como interioridade oposta ao mundo.
           Essa oposição de interioridade e exterioridade na formulação da ironia começa em Hegel, que nisso encontrou mais um motivo para criticar o que caracterizou como o eu romântico numa inserção que lembra a dualidade kirkegaadiana entre o ético e o religioso. O eu romântico não dialético não realiza a síntese intersubjetiva, se pensa apenas como solipsismo individualista, e na base da absolutez do pensamento pode descartar-se da realidade e afirmar no seu íntimo apenas a fantasia que imagina como o único real. Torna-se ironia por não desconhecer que a realidade não é como pinta interiormente, mas escolhendo a fantasia, continuamente nega ou anula a realidade do mesmo modo que a figura da ironia atua na linguagem afirmando o seu contrário, o oposto do que expressa. Nesse caso, pode ser que a realidade seja a ironia expressa para o eu romântico que assim agora decide situá-la.
          Em Hegel e Kirkegaard há evidentemente já em trânsito a crítica do eu romântico e sua ironia. Em nenhum deles, contudo, deixa de haver uma teoria da Subjetividade endereçada como superação do que se critica dos outros românticos. Assim, seria complicado situá-los como não românticos. O que é afirmado não ressoa com o que move uma crítica já como a de Nietzsche. Schopenhauer, enquanto um pensador não-cristão, também coloca esse enigma pelo qual o que nele seria a ironia como a negação, viria como a negação ativa do eu em relação a suas próprias vontade e representação, isto é, o desejo aderido ao mundo, o que para Schopenhauer é inevitavelmente a raiz do egoísmo e de tudo o que se faz por egoísmo, não havendo outra motivação do que o ser vivo faz.
           Abbagnano comentou a propósito que as leituras críticas de Hegel e Kirkegaard a propósito da ironia dos outros românticos na verdade não correspondem ao que F. Schlegel tematizou longamente sob essa rubrica.
          Podemos inferir que serve como meio de suas críticas ao que rejeitam não do que impulsiona originariamente o romantismo, mas ao que designam romantismo em termos de uma solução que eles querem de outro modo enunciada, a saber, originariamente a problemática sendo a subjetividade em termos de reflexividade da experiência que assim se torna temporalização.
          Tanto Hegel quanto Kirkegaard enunciam que a solução pretendida por suas filosofias se designa cristianismo, ainda que ambos tenham por esse termo concepções destoantes, sendo o segundo crítico acerbo do primeiro numa época em que essa rejeição de Hegel estava já em alto grau de adiantamento na Europa, mas como o móvel subjacente de todo pars construens que assim se seguia.
          Isso nos coloca numa vantagem em relação aos que se contentam com a redução do romantismo a um único passadismo tradicionalista, isto é, um movimento reacionário do cristianismo europeu, católico e protestante, voltado em bloco contra o progessismo aufklaerung. Mas há ainda assim considerável trabalho de elucidação da questão do que significa “cristão”, nas várias posições em que o termo aparece nos escritos dos românticos, basicamente confrontada a “clássico” ou greco-romano, como na célebre oposição nomeada por W. Schlegel.
        Aguiar (Teoria da Literatura), por exemplo, nada acena a esse necessário desenvolvimento, esboçando inversamente o romantismo em torno do heroísmo prometeico que não hesita em exaltar as figuras malditas pelo símbolo cristão, como Satã ou Caim, de Milton e Byron, o d. Juan de Mozart ou Karl Moor de Schiller, uma vez que se caem, o fazem pela exaltação de sua sede de absoluto, expressão corajosa de sua verdade íntima. Por isso a queda lhes convém como o coroamento do seu desejo impossível. A própria queda é toda a vitória dessas figuras.
         A Sehnsucht, vagamente tradutível por "nostalgia", uma melancolia que não se explica pelo desejo de alguma coisa concreta, se associa a essa sede, como uma “insatisfação perpétua” na expressão de Aguiar, e é por ele associado como distintivo do herói romântico. 
         O "mal do século", pelo contrário, assinala o sentimento de perdição, de consumação do mal, de si mesmo como veículo do desejo impossível ou como um mal irremediável por não ser adequado o desejo íntimo à condição própria, assim o Carlos de Garret.
        A ironia é apresentada em seguida, como o distanciamento ou superioridade prescrita ao autor em relação à obra, ao ponto de se dever quebrar positivamente a tradição da objetividade, a partir da intervenção expressa do autor no texto, ou do dramaturgo na cena. Afinal a religiosidade romântica é definida por Aguiar como panteísmo, vindo daquela fruição da natureza livre, como em Rousseau.
        Todas essas rubricas são reportáveis do que seria basilar ao romantismo, o idealismo subjetivo de Schelling e Fichte, onde o conceito de eu absoluto é apresentado por Aguiar em termos de um desdobramento filosófico do ideal e do real, do conhecer e do ser, erroneamente interpretado pelos artistas que pela terminologia do Eu absoluto só compreenderam o eu individual egotista. Na verdade, enunciando ambos os pensadores, Aguiar só expõe sucintamente o esquema de Fichte em que se tem a afirmação do eu ao se por, a oposição do não-eu uma vez que o eu se põe, e a consciência como a apreensão da enunciada dualidade e sua interpenetração recíproca.
         Aguiar não noticia o que foi bastante enfatizado por Benjamin em termos da polêmica importante que os Schlegel e Schelling moveram a Fichte, pelo que a reflexão como método da doutrina da ciência deste filósofo, teria para eles que resultar na evidenciação não da imediatez para si de toda experiência pensada como conteúdo abstraível de uma consciência pensante, mas sim na ambiguidade entre o já pensado e o por pensar em termos de conteúdo. A consciência que reflete não é um meio transparente ou puramente posicional, mas uma poiese como meio de reflexão daquilo em que se reflete, vindo assim a arte como esse meio de reflexão. Não pode haver abstração da consciência para si naquilo em que se ela se põe, o que há é a alterização do seu em si, que assim se reflete ou constitui como linguagem ou conteúdo.
         A meu ver a Sehnsucht seria melhor aproximada à expressão “infinito anelo” que W. Schlegel e Hoffman utilizam, e aquele designou em termos do que opõe o romantismo cristão ao classicismo. O infinito é noticiado em Aguiar somente com relação à atividade pura do Eu fichtiano, enquanto W. Schlegel o associa à consequência da interpretação do cristianismo como uma doutrina da eleição. A salvação não é para todos, mas os predestinados não são distinguíveis pelos homens. A salvação significando eternidade, a condição do homem não predestinado é virtualmente a de todos, uma vez que não se pode saber antes do juízo ou do apocalipse.
           Mas a aspiração a ser eterno é própria de toda alma, e o infinito anelo é o desejo dessa eternidade que não se atinge por qualquer saber possível, vindo então o saber dessa impossibilidade de saber, junto à consciência da finitude. Aqui há portanto, uma concepção da subjetividade em que um desejo não correlato à natureza ou a concretude, a alguma coisa naturalmente dada ao apetite ou à condição meramente corpórea, é essencial. Essa não é a subjetividade clássica, e o classicismo relacionando-se mais propriamente ao iluminismo do que à antiguidade.
          Na moral do sentimento iluminista ("aufklaerung"), vinha a harmonia do desejo humano à indústria que suplementando a natureza o supriria, uma vez que todo desejo humano seria compreensível pela condição corpórea – vícios privados, benefícios públicos como os florescentes negócios que os atendem, assim como reza a nova cartilha da sociedade racional-empirista do século XVIII. A expressão "o robô feliz" tem sido usada por críticos sociais do século XX exatamente nessa acepção, isto é, contra essa doutrina do sentimento "aufklaerung", e o Romantismo se enunciou como emergência pioneira dessa crítica. Pretendeu-se assim não um passadismo, mas uma teoria socialista da indústria de modo que ela não poderia ser a finalidade única do homem pensado como ser cultural e espiritual.
         No aufklaerung, o  ser humano não era mais intelecto puro contrastado à paixão como no antigo racionalismo, mas sim esse ser sentimental cujo desejo seria imorredouro, sempre renovado e sempre satisfeito, mas desejo funcionalmente adaptado a um cosmos social redutível à máquina absolutamente regular e fixa do universo, num parâmetro da natureza anterior à Biologia (transformismo).
         O Romantismo não é o sentimento natural, mas efeito de uma imaginação em que se produz como desejo, pela reflexão dos valores na linguagem, as aspirações puramente subjetivas, digamos, psicológicas, não previsíveis por algum cálculo da natureza. Também o universo não é o relógio de Newton e Voltaire, agora que o transformismo o tornou animado por uma ação imanente que restava por se conceituar. É essa apreensão do transformismo na viragem organicista da biologia emergente que se traduz, a meu ver de forma errada, por panteísmo. O que se fazia era a tentativa de integrar numa apreensão religiosa a nova imagem do mundo, mas a essa altura por religião não se devia entender a revelação de um conteúdo extrínseco à forma. Entre Spinoza e Schelling, podemos notar que há esse conteúdo novo, o "organismo". Deus cria "infinitos curvos" posto que orgânicos, conforme Schelling, ou seja, sua causalidade não é senão de retroalimentação.
           Como Otavio Paz bem colocou, a demiurgia mística nasce com o Romantismo instaurando a revolução permanente como a desiderata de uma arte “moderna”. Toda revelação religiosa historicamente existente não mais se lê abstraindo o fato estético em que se constitui, a consequência vindo então a ser o que constitui todo poeta, uma revelação, uma criação de mundo – linguagem ou valor, ainda hoje a teoria do inconsciente estando presa nesse dilema entre a letra e o sentido. William Blake não é o único poeta místico, mas toda poesia romântica se pensa um misticismo enquanto as religiões constituídas se tornam conceituadas como materialmente derivando do artista que plasma suas formas poéticas (litúrgicas, escritas).
             Inversamente ao conceito de Natureza do classicismo, o cristianismo tem por correlato o reino dos céus, concepção apenas estética ou religiosa. Vem assim a oposição de W. Schlegel entre beleza plástica e ideal de perfeição clássicos por um lado, e estética romântica como temática do infinito, por outro lado, o que implica a imperfeição de tudo o que é terreno ou produzido, mais precisamente a imperfeição e inacabamento da obra.
          O cristianismo tematizado como romantismo coloca então esse problema historiador de sua irredutibilidade ao dogma. Com Hegel,  mais ainda, colocará o problema até hoje insolúvel da identificação da revelação com o homem histórico - assim resta a dúvida sobre se isso significa a redução religiosa da história ou inversamente, a redução histórica do cristianismo que resta portanto, apenas pretexto da evolução filosófica.
           Por outro lado, a identificação do romantismo como estética de um eu individualista egotista que seria basicamente derivado, bem ou mal, da doutrina de Fichte, é o que Hegel e Kirkegaard criticam, como vimos. Assim podemos propor que o endereço de sua crítica é o filósofo mais que o movimento estético que eles na verdade não referenciam detalhadamente ao criticar a ironia - ou o individualismo – como o que é típico dos românticos.
          Kirkegaard pode bem ser um modelo da estética romântica, a partir de seus escritos sobre o don Juan de Mozart. Assim como Hegel, ele rejeita radicalmente toda redução mimética da arte, Hegel ao opor de forma peremptória e decisiva o belo natural e o belo artístico, até chegar a afirmar que por mais belo que seja o canto do pássaro, e mais insipiente o do homem, é o humano que realmente é belo posto que o veículo de um desejo do que expressa, enquanto Kirkegaard condena toda reprodução em música, de sonoridades naturais como o bater de portas ou o mugido de bois.
         A objetividade está anulada, e o que conta não é a subjetividade meramente idealizada como o contrário da coisa, mas aquela subjetividade intrinsecamente espiritualizada que tematiza W. Schlegel.
          O eterno retorno nietzschiano critica do mesmo modo a ironia como negação, conquanto o negado seja a experiência posta na objetividade do passado para o eu presente, que para Nietzsche, contudo, se faz assim apenas o negador do devir. Mas o que seria o eterno retorno, senão a seleção do que o eu reflete como seu devir, em termos do que ele afirma absolutamente ser Eu? A vontade de potência é essa experiência situada de um Eu autopoiético, não dado como natureza ou individualidade apenas psico-física.
           Ora, podemos aqui colocar a questão da vontade de potência como oposição à teoria do sujeito, assim como o múltiplo e plural é oponível ao uno e substancial. Mas quando examinamos o texto de F. Schlegel referencial da ironia dos românticos, toda a terminologia é surpreendentemente pluralista e enigmática por esse motivo. As duas seleções desse texto, a de Abbagnano e Aguiar, o demonstram.
           Aguiar cita o correlato de uma definição sucinta pela qual, segundo Fredrich Schlegel, ironia é “a clara consciência da eterna agilidade da plenitude infinita do caos”. Aguiar interpreta assim que se trata, conforme sua expressão, da “consciência do caráter antinômico da realidade”, constituindo-se como atitude de superação das contradições pelo eu, portanto o Eu se tornando a única realidade como quando o autor ou o dramaturgo intervém ao desvendamento não da trama, mas da obra.
         Creio que essa interpretação traduz basicamente o processo dialético hegeliano, mas sendo a síntese apenas presentação da superioridade do eu em relação a todo devir que restasse suposto objetivo em si, fora da relação subjetivada em que se torna devir.
          Ora, deveríamos notar que a objetividade do devir não é nessa concepção, a unidade das coisas ou de alguma experiência possível. As antinomias não foram, como em Kant, nomeadas como insolúveis apenas para serem superadas por uma razão que situa as coisas na sua absoluta identidade consigo mesmas. As antinomias, Kant as empurrou para os limites do sentido, a matéria da metafísica, as questões propriamente definidas como desarrazoadas por um excesso de razão não refreada pela adequação do entendimento – como decisão sobre se o mundo é criado ou incriado, por exemplo.
           Mas a realidade dos românticos é o lugar movimentado pela antítese, e basicamente aquela que Kant instaurou com o transcendental mas ingenuamente, pois  ao mesmo tempo que afirmando estar impedindo para sempre de tornar a ser a matéria problemática da filosofia, entre o eu penso absoluto e o mundo fenomênico que ele cria para si.
           A partir da evidenciação da impossibilidade da pretensão kantiana de ter encerrado a problemática, e da reinserção do transcendental como o novo meio da problemática, o Sujeito tornou-se pioneiramente pensável em todo o curso do pensamento assim designado ocidental.
          A seleção de Abbagnano é um tanto mais extensa. Schlegel fala a princípio de uma renúncia cujo objeto é ora uma parte do eu, em favor de outra parte do eu; ora da identificação do uno com este ou aquele ente eclipsando voluntariamente assim todos os demais.
          Mas em todo caso, a partir dessa parcialização da experiência, volta-se ao seu agente como alguém de exceção: “isto pode somente um espírito que contem em si como uma pluralidade de espíritos e tudo quanto um sistema de pessoas, e em cujo íntimo o universo que, como se diz, está em germe em todos os mundos, desenvolveu-se e sobreveio à maturidade”.
        O agente multiplica-se em agências, o Eu romântico se torna o que continua ainda por pensar. Pois não estamos habituados a tematizar o Romantismo em termos de empresa de liquidação de toda pretérita filosofia, e assim não é comum colocar a questão do que isso envolve, assim como caos em conexão a sistema, sobreposição de universo e de mundos, multiplicidade de “eus” e maturação cósmica não são expressões que tenham se tornado familiares à teoria.
           Nada resta do antigo idealismo naquilo a que se designa o “idealismo absoluto” dos pós-kantianos. A cisão do aparente e do real que neutraliza toda aparência como o nada da experiência se elide, mas não porque a experiência engloba agora o que antes se tinha por absoluto real, o mundo das ideias claras e distintas. Este Real não mais se pensa senão articulado, uma vez que não é pensável fora da experiência do pensamento, mas esta, como a do Eu, é temporalidade.
         

         Na estética de Hegel a problemática do Eu não se exaure a partir da crítica ao artista assim designado romântico. Hegel de fato constroi uma categoria estética de modernidade, precisamente a partir de uma concepção subjetivada do personagem, o que para ele seria contrastável exemplarmente ao "heroi" do mito antigo. A seguir, focalizo essa questão visando um paralelo com a terminologia do heroi que Hegel conserva, porém, na sua filosofia da História.
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           0 8 / 11
        A estética hegeliana apresenta-se num afastamento notável em relação ao que podemos constatar comum aos dois trabalhos mais referenciais dos valores estilísticos românticos, as Lições sobre arte dramática, de W. Schlegel, e O gênio do cristianismo, de Chateaubriand. Nestes, nada se afirma com  maior alarde do que a oposição nítida entre os padrões estéticos clássicos e aqueles que podemos haurir do exame das produções cristãs.
        Hegel, pelo contrário, se os trata conceitualmente como momentos históricos distintos (capítulo IV), a arte do cristianismo subsequente e portanto mais completa que a do classicismo, quando se trata na parte consagrada ao "belo artístico e o ideal",  da "determinação do ideal", que é o modo como a forma se expressa a nós, não insere qualquer diferença.
        Nessa concepção de Hegel,  toda arte autêntica expressa a serenidade e o beatífico do ideal sem mácula - assim, em pintura e a escultura são e devem ser apresentados "Deus, Cristo, os apóstolos, os santos, os arrependidos e os devotos", possuindo pleno contentamento de quem esté  livre dessas "máculas da vida terrestre" que formam desta vida "o domínio das suas inumeráveis complicações, oposições e lutas"; como também  Hércules, Apolo ou Marte são figuras do "remanso que se segue à ação", ou "forças e poderes firmes e estáveis" que mesmo orientando-se para o exterior e envolvendo-se nas complicações mundanas, devem apesar de tudo conservar a majestade eterna e imperturbável.
      Hegel, Shlegel e Chateaubriand, contudo, estão pronunciando-se como porta-vozes de uma modernidade da arte, assim como do tempo, se bem que os dois primeiros explicitamente.
        Em todo caso, em todos os três trata-se de deslocar o classicismo greco-romano como único referencial da cultura e da estética, lembrando que o Romantismo emerge como período de uma tematização estilística imediatamente posterior ao aufklaerung classicista, anti-religioso, intensamente voltado contra a estética medieval e o que dela pudesse ter contaminado o presente, por meio dos "preciosismos" da expressão barroca.
        Atualmente há maior atenção ao que poderia ser definido como um interregno pré-romântico entre classicismo aufklaerung e romantismo, e a meu ver isso é válido.
         Mas por exemplo Carpeaux em estética e Bréhier em história da filosofia, tratam nada menos que o "século XVIII" inteiro - em termos de uma mentalidade assinalável -  como um cenário de oposição entre classicismo aufklaerung crítico e racionalista, e pré-romantismo místico e sentimentalista.
       Enquanto o  mais habitual é encontrar o pré-romantismo como tendência que se afirma apenas desde os anos setenta daquele século, tendo sua expressão mais conspícua no Sturm und Drung e Rousseau, antes da plena expressão dos românticos desde os irmãos Schlegel, Novalis, Holderlin, e os pós-kantianos na Alemanha, com a repercussão na França seja dos críticos de Kant, seja de Mme. de Stael celebrando os novos parâmetros vindos daquele país, já na ambiência do século XIX.
       A meu ver, o importante é que o Romantismo seja oponível ao Pré-romantismo assim como a afirmação da modernidade se opõe a um ambiente  em que os novos tempos já são fato na mentalidade corrente, mas há incerteza ou descrédito no seu valor. A compreensão do romantismo francês como de Biran e Cousin, se beneficia com essa oposição, pois de fato não são confundíveis com o reacionarismo dos "tradicionalistas" como De Maistre e Bonald. E a posição cristã, mas dogmática, de Chateaubriand poderia assim ser mais associada ao pré-romantismo.
       Ao longo do século XVIII o predomínio dos antigos clássicos greco-romanos já estava um tanto relativizado pela cena "realista", em sentido amplo, do teatro, como em Dancour. Tratou-se de aburguesar a cena, de mostrar o que podia ser protagonizado pelo homem médio da plateia, como observou Carpeaux. Mas os padrões aristotélicos de unidade cênica e encadeamento inteligível objetivo estavam inteiramente conservados, e é o que vemos ser objeto da crítica dos românticos, assim Shlegel nas "Lições..." contrapondo-se ao princípio clássico da arte como imitação (mímesis). Todos imitam, argumenta, desde crianças, mas nem todos produzem arte teatral que para se realizar depende da técnica, da presença de códigos inerentes à estruturação da cena.
        Os valores da estética hegeliana não são, como na aristotélica, o necessário e o verossímil, não obstante o que a exaltação do ideal como apaziguamento da ação em vez de valorização dela, poderia fazer parecer. Este é aliás mais um motivo da singularidade de Hegel, pois nas "Lições..." de W. Schlegel, a ação é o valor mais alto não só da arte, o que coloca a centralidade do "drama" na sua estética, mas da existência. A ação em W. Schlegel é o referencial da "alegria", o que contrabalança, como valor romântico e anti-classicista, a nostalgia da alma pela infinitude.  
           As duas noções de necessário e verossímil são bastante complexas mesmo em Aristóteles, mas por ora podemos lidar com elas numa base aproximativa pelo que o necessário é o encadeamento total da estória, e o verossímil é o critério do necessário relativo a cada ato, cada cena, cada parte da história. É verossímil aquilo que se mostra, no tempo da apresentação da obra, concatenado de modo coerente à estória cuja recepção total precisa despertar o assentimento na absoluta necessidade do que nela ocorreu.
          Como vimos, isso para Aristóteles é o oposto da história dos historiadores, onde em vez dessa necessidade, trata-se apenas do que alguém em particular - como Alcibíades -  fez, e o que lhe aconteceu. Ressalto mais uma vez a estranheza a nós de uma oposição assim, entre estória e história, de modo que entender o "necessário" da estória é o que deveríamos colocar como a nossa dificuldade de interpretação de Aristóteles - lembrando ainda que o passado não é de fato acessível, o que é uma lição também dos românticos que estavam plenamente conscientes de que o classicismo que criticavam era uma realidade do seu presente histórico, moldada por certas interpretações limitadas do passado - assim especialmente a crítica dos românticos a Goethe.
        Eles não argumentavam na base de que haviam obtido uma verdade sobre o passado que Goethe desconhecia na sua obstinação pela imutabilidade dos modelos greco-romanos. E sim que também o que já se sabia das diferenças entre a idealização corrente desses modelos e a realidade história, se bem que produzindo uma revolução epistêmica não era mais do que o que se podia fazer por ora, na vigência das limitações do presente. Não mais acreditavam senão num conhecimento historicamente relativizado do objeto.
          Inversamente ao necessário, é o conceito do arbitrário, consequentemente do arbitrário em arte, que ocupa a parte inicial da Estética de Hegel. As notas do seu conceito são o acaso e a paixão. O primeiro se relaciona ao modo como associações subjetivas são provocadas, sem nexo necessário por alguma causa externa, apenas despertadas pelos estímulos externos movidos ao empréstimo de uma significação de algum modo puramente subjetivo. A segunda, pelo contrário, é uma espécie de campo de prova, pois tudo no acaso será mero engano e desvairio errôneo até que como “representações internas”, venham a possuir aquela parte de “vivacidade irresistível que nos arrasta à paixão”.
           A serenidade do ideal e o princípio do arbitrário não estão de fato numa contradição, posto que não é como "catarse" ou expiação do que desperta terror e piedade, como na fórmula aristotélica, que se trata o desenvolvimento da cena em Hegel.
            E sim como afirmação do "poder" ou do "substancial" do ideal pela sua recepção da obra, que cada um dos receptores "satisfaz as suas exigências interiores referindo àquele substancial a sua atividade vivente, a sua força de vontade, seus interesses, paixões, etc.". A paixão como princípio estético é o que implica a nossa adesão à obra como verdade possível, a partir do fato de sermos nós também seres passionais. O princípio atua como o que desvenda a mecânica da recepção, o porque de algumas obras serem consideradas como tais, enquanto algumas produções não obtem adesão.
         Insistindo no contraste desse alinhamento hegeliano da arte clássica e cristã numa só concepção do ideal enquanto realização da forma, em relação à oposição radical respectivamente de finito e infinito (Schlegel) ou de universal e subjetivo (Chateaubriand), creio que podemos relacioná-la a um desacordo mais generalizado em função do que para mim, como já assinalei, distingue propriamente o Romantismo.
         O termo "romântico" é definido por W. Schlegel nas Lições... como derivando da designação das línguas nacionais que se afirmaram após o feudalismo, por um processo de formação como amálgama dos idiomas bárbaros e do latim. A valorização do cristianismo como um ingrediente cultural que não mais se quer abstrair dessa composição para dela fazer, como no classicismo, apenas uma perpetuação da cultura antigo-greco-latina, em Schlegel está explicitamente conexa à temática da história.
        Como religião, o cristianismo insere a modernidade na própria Antiguidade, pois sendo Revelação do Cristo, é  uma mensagem que não pode abstrair o fato histórico de si mesma como presentação no tempo, e dependendo do desenvolvimento temporal da propagação evangelística para cumprir-se quanto ao conteúdo revelado.
           A relação entre Sujeito e História que é essencial aos romantismos se deriva precisamente dessa impossibilidade,  apontada como a lição só dos modernos (pós-auflklerunt/classicismo), de abstrair o devir que é temporalidade histórica, quando se trata de pensar o absoluto, a realidade que nesse devir se revela ou expressa.
          Nesse ponto me parece ser inserível a temática dos duplos do fantástico romântico - aquela literatura em que tantos autores da época se exercitaram, na qual se trata de um personagem que se vê defrontado com um duplo, imagem especular autonomizada, sombra ou sósia, conforme a estória. Pois, não se trata mais na modernidade definida para si do Romantismo, do dualismo metafísico onde ser e devir, e os demais pares de opostos, são inseridos de modo paralógico tal que um só se coloca pelo outro, mas assim colocando-se implica a abstração do outro, a destituição desse outro (devir) do caráter do pensável  - paralógica de fundamento-suplemento estruturante de toda metafísica.
        Com o Romantismo, em vez do dualismo terminológico metafísico há uma duplicidade real em que o absoluto do pensar ou do por de algo como tal impede abstrair o fato de ser devir em relação a que algo se põe como pensado ou realizado. Se algo se põe ou se pensa, é absolutamente em devir, ou seja, como Sujeito, não como abstraível nesse caráter de  singularidade histórica do seu por ou pensar. Por um lado, não há mais critério metafísico discernível que é pensamento autêntico ´(ser) e do que é mera potência (palavra). Mas por outro lado, o Sujeito não está dado numa generalidade do ser, e sim na relação de sua particularidade com essa generalidade do absoluto.
        Assim se revela a necessidade da ironia. Entre o devir não mais dualmente apreendido no fato de sua abstração, e o ser ou realidade a ser tematizada como absoluto, há agora uma cisão irremediável, não mais uma unidade. A arte ou mediação estética da história surge nessa centralidade da cultura, posto que é onde se faz a conciliação, e o fato bruto se torna valor, interpretação.
      Se não pela ironia, o artista se confundiria com o que ele faz, se perderia na idealidade que pelo contrário, a nova imagem do artista como profissional, competência de uma formação e uma técnica, implica manter sob o crivo do que ela é - não imediatamente o Real onde pelo contrário, o que há é a cisão factual. O princípio caro ao artista romântico, muito inversamente ao que Nietzsche e outros propagaram, é a "sobriedade".
       É Schelling e sua concepção de "ideia" como algo indiscernível da "beleza" que nos permite apreender o mais claramente essa concepção. Aqui o acontecimento importante do exemplo é o mesmo que para Lacan, a descoberta de que a órbita dos planetas não é perfeita ou circular, mas elíptica. Eis o fato.
       Para Schelling, contudo, a ideia propriamente não é a elipse e o cálculo matemático, mas o círculo - o que mede o intervalo da nossa aspiração ou anelo da perfeição ou ideal, e a realidade da elipse.
            Essa é uma posição complicada de se entender, mas pelo que depreendo do texto de Schelling, a ideia tornada estética - não mais podendo ser científica - do cosmos como bela ordenação esférica, expressa-se como a verdade da relação do sujeito que a produz com o fato que ele coloca assim na exterioridade não de si, mas da ordenação discursiva em que não se trata da ciência, e sim da estética, em que o si se põe nesse acontecimento expressivo.  
        Esta posição - imaginação discursivizada, circunscrita a um gênero de expressão como no "simbólico" lacaniano -  não mais sendo apenas uma fantasia, mas propriamente um ideal posto que uma construção regrada na cultura.
          Tanto não imediatamente expressão de si, mas da relação situada expressiva de si, que, por outro lado, o critério da excelência estética dos românticos não é o "plástico" como a beleza perfeita dos clássicos, mas o que chamam "pituresco", melhor expresso no que tratam por "pintura histórica" como em Hoffman ("A igreja dos jesuítas de G..."). Neste conto se fala da pintura histórica como aquela em o  apresentado é um acontecimento em que estão envolvidos subjetivamente os personagens, como nas cenas sacras cristãs, em vez de uma cena exposta apenas objetivamente.  Ou seja, a própria cena cristã suposta não tratada com o realismo "jesuítico", ou seja, não suposta como mera edificação tal que induzisse a pensar que pelas obras - e pela valorização deste mundo, confusão de Deus e criaturas - se garante a salvação.  
         Se não pela ironia, portanto se não pelo que decorre do seu princípio de sobriedade como compreensão inalienável dessa circunscrição discursiva - ou da imaginação - o artista seria aquele indivíduo criticado dos contos de Hoffman, como o pintor desse conto ou a atriz do Don Juan, que se perdem por sua ânsia de perfeição e de absoluto.
         Uma visão da história se depreende assim. É o ser superior, o artista ou o homem que cria valores, que a move, mas o que ele faz como interpretação que será válida para outros, vem a partir de um mal inerradicável com que ele se defronta nos termos da perda da unidade do ideal - digamos, a descoberta da elipse.
      Não é à toa que as relações entre Schelling e Hegel se azedaram precisamente nesse ponto, o do jungamento da história, conforme o texto de Schelling permite apreender. Um dos motejos que Schelling encontra para criticar Hegel é que este teria escrito livros cada vez mais vulgarizados, com vistas a agradar ao grande público.
        Portanto, quando Schelling critica Hegel por colocar a história num parâmetro tal que, sendo aquilo que se faz depois de ter lido a Lógica, ela poderia ser protagonizada pelos homens quaiquer, em vez de exclusivamente essa classe superior, parece estar sendo afirmado que algo na história hegeliana escapa ao princípio da conciliação que ele mesmo, Hegel, conceituou como o papel dos valores na cultura.
         De fato, parece-me que para simplificar um tanto, podemos utilizar o exemplo da elipse e dizer que para Hegel, assim como para Lacan, a história do Saber e seu desenvolvimento se resumem - quanto a esse momento -  na descoberta da elipse, da imperfeição da trajetória dos planetas.
          Na filosofia da história, o heroi hegeliano, o agente histórico, não é o homem que representa melhor o valor vigente. Pelo contrário, é aquele que antecipa o valor necessariamente por vir, e se coloca assim contra a ordem vigente, tornada caduca mas pela qual os homens comuns vão combater. Esse agente ou heroi histórico é um fora da lei, mas somente de uma lei que a marcha da história tornou injusta, inajustável ao presente ainda que antes possa ter sido a fórmula aplicável.
         Mas aqui devemos lembrar que mais revolucionário à  história do Saber do que a desconstrução do cosmos antigo pela descoberta da elipse ligada à afirmação do heliocentrismo, é na vigência do Romantismo a problemática evolucionista que vai afetar precisamente as consequências da penetração epistemológica da História como ciência, no ponto em que se trata da impossibilidade de manter o dualismo dos estados de natureza e sociedade com que o período classicista havia tratado a questão do selvagem.
        O esquema de Bréhier, pelo qual o pré-romantismo é uma constante mística do século XVIII, se deduz da sua perspectiva do evolucionismo como uma afirmação gradual na ciência, desde a percepção ao longo desse século, de uma cadeia de progressividade unindo as espécies, ainda que nele permanecendo como realidades fixas ao modo dos gêneros aristotélicos.
      Creio que também Foucault, em As palavras e as coisas  tratou assim o tema. Mas na verdade, vemos que uma ruptura profunda efetivamente tem lugar a partir de Lamarck, uma vez que a inteligibilidade dos gêneros se impossibilita. Não se trata apenas de uma mudança estrutural ao fazer científico.
        Era a  inteligibilidade dos gêneros aristotélicos que apaziguava a consciência europeia, em se tratando do problema da alteridade radical do selvagem, e permitia mesmo que fosse suposto uma origem boa do homem, ao mesmo tempo que permanecendo essa origem sem solução de continuidade ao homem em sentido pleno - o civilizado, o atual.
          Assim também, se existe uma cadeia de progressividade entre as espécies, mas ainda não o transformismo, uma espécie não deixa de não ser essencialmente a outra, não obstante poder ser caracterizada como um protótipo mais simples em relação a essa outra, até o homem como a espécie mais perfeita e complexa porque dotada de inteligência.
          A Natureza como unidade clássica, impossibilitada na modernidade a partir do transformismo, não creio que tenha sido um erro de Foucault conceituar. Mas a partir daí, o problema da alteridade coagindo o pensar se torna agudo.
          O Romantismo europeu torna a cultura múltipla, em vez da unidade estética greco-romana, e transpõe ao erudito as formas de cultura popular, mas essa miscigenação do popular ele interpreta em função do produto acabado, o tipo nacional da atualidade europeia, aquele que  realizou o processo histórico além da mediação cultural em que todo povo satisfaz sua necessidade de preencher o intervalo entre o seu saber dos fatos e sua espiritualidade como aspiração ideal. Aquele, pois, que tem a mais o Saber da história e da ciência.
          Mas obseda o problema do que transborda esse tipo nacional, e o primitivo, o negro, o monstruoso, torna-se desde aí a borda em torno de que os limites do conciliável na factualidade se fendem como ao redor de uma cicatriz.
         Entre o animal e o homem, não podendo mais o selvagem ser pensado como outro do homem, a impossibilidade de aceitar o que o europeu vê como disformidade em termos de uma igualdade de si redobra o que há de estratégico nesse novo lugar da História que como tal ao mesmo tempo que permite à Europa conciliar a diferença dos povos que se emancipam, permite-lhe também conservar para si o estatuto da sua superioridade - assim expressamente em Herder, o criador da "história nacional".
           Mas se a América é o lugar do futuro, como em Hegel, se a factualidade é o objeto da história, o compromisso europeu se torna ameaçado. Schelling parece ter endereçado a Hegel precisamente essa crítica. Hegel não teria como reassegurar o compromisso, pois se não pela conciliação na cultura, reduzindo-se assim todo valor de descoberta do mau na ciência, de que modo a superioridade europeia poderia continuar a ser predicada?
         Devemos lembrar que todo esse panorama evolui na proximidade à leitura pessimista de Burke a propósito da modernidade, pelos traumáticos acontecimentos na França. Frente à subitamente visível ação histórica das massas déclassé – servos no campo e sans cullotes na cidade –  somente se considerou presente a antítese de todo ethos humano pensável: “The age of chilvary is gone. That of sophisters, economites, and calculator has succeded; and the glory of Europe is extinguished for ever”.
        Carpeaux se apressa em demonstrar que Edmund Burke estava errado, porque não havia entendido a diferença entre as situações francesa e inglesa quanto ao significado de “privilégios” ou “preferências”, e assim pensado que a revolução na França era situável como o que teria parecido na Inglaterra, uma aberração inútil.
          Entre ambos os países, conforme ele, não foi o classicismo aufkaerung francês, nem o empirismo inglês que nesse plano epistêmico lhe é complementar, o locus de que emerge o novo meio de validação cultural da Europa burguesa, mas a Alemanha, pré-romântica e romântica, a partir do que poderia tipicamente ser descrito como círculo em torno de Schleiermacher – um protestantismo liberal, humano-cientificizado, e intensamente socializado, cosmopolita. A burguesia não eram as massas, o povo tampouco, se ele pudesse ser visado como elemento da nacionalidade, cristão e aculturado. Não obstante, vemos que a realidade desse outro não mediado não foi de fato conceituável, isto é, não pode se abranger num paradigma do novo.
            What Maisie Knew, de James, mostra a menina inglesa, para quem a rica mulher americana parece apenas um macaco - por não ser loura e ser robusta. Hoffman expressa muitas vezes esse trauma do inconciliável biológico - e devemos lembrar que a revolução política da derrubada da nobreza na própria Europa não foi como se diz, um empreendimento burguês, ou dos filósofos das "luzes", mas a irrupção do elemento verdadeiramente estranho à cultura, o popular não mediado, não conciliado, como a turba que vemos na cena do conto sobre a igreja dos jesuítas, assaltando o castelo onde Berthold salvará Angiola, com quem se envolve, mas de quem se torna suspeito de assassinato.
          A impossibilidade de conciliar a Angiola ideal que a princípio ele pensou ser uma visão místioca, e a Angiola material que ele desposa, de fato implica a inviabilização da normalidade psíquica do personagem, paralelo à impossibilidade dele expressar a subjetividade da Angiola tornada sua modelo na pintura.
        Essa impossibilidade de transpor a natureza ao subjetivo, implica a desfiguração da modelo no quadro, e desde aí o pintor já não pode ver Angiola real senão desfigurada, até que não sabemos exatamente como ele se liberta da relação, mas tornando-se suspeito aos olhos da comunidade.
          O transporte do tema da deformação do rosto visto ao da fronteira entre o símio e o homem temos na referência  do delírio do pintor nesse conto. A fala do pintor  referencia o objeto  demasiado complexo para ser atingido pela representação como para o que é“impossível utilizar uma regra”. O frenesi se relaciona à sua ânsia de pintar o que ele não consegue captar. Trata-se da aparência irregular, numa gradação: do animal ao “mono” e até o rosto humano que se torna a obsessão repetida dessa fala delirante.
            Em don Juan, o “rosto amulatado” integra a companhia dos frequentadores superficiais do bar, simetricamente inversos por sua mediocridade e superficialidade, à  beleza da idealista atriz vitimada, ao que parece, pela melancolia do seu ideal estético. 
        O repulsivo racial torna-se assim o repulsivo natural. Em Hoffman o repulsivo compacta valores indubitavelmente racistas. O mulato ou o disforme chega também num outro conto a ser tratado numa indiscernibilidade ao macaco, cuja espécie se localiza melhor nos trópicos, como o “magnífico brasileiro, o assim chamado Mycetes Belzebub - Simia Belzebub Linnei – niger, barbattus, podiis caudaque apice brunneis – um guariba” com que Cinabre, o personagem do conto Zacharias, um disforme biológico por ter nascido defeituoso, foi confundido no museu.
          E de fato, o cabelo vermelho que explica o apelido de Zacharias me parece uma chave da composição deste conto, pelo fato de que a “raça” americana foi primeiro classificada por Linneo (1735) como vermelha: “Homo sapiens Americanus Ruffus”.
          A estória é estruturada em torno do encantamento de uma fada penalizada pela situação de miséria na qual nasce a criança defeituosa. Toda manifestação de excelência que alguém produz perto de Zacharias se torna associada pelos presentes, a ele. O encantamento depende da fada renovar periodicamente fios de cabelo vermelho que ela insere entre os cabelos do pequeno monstro.
           Zacharias não é desde sempre reduzido a animal/monstro por essa particularidade -  a mesma que designa em Lineu  a raça americana. Todas as demais designações de Zacharias são dúbias como efetivamente atribuíveis a ele, porque não são relacionáveis a nada mais, enquanto a humanidade permanece inalienável uma vez que é relacionável ao atributo dos cabelos ("vermelho") - assim, a chave "Lineu" permitiria articular no conto um estatuto único de Zacharias que além disso nada é além da fala do outro - ele de fato nem mesmo fala, mia.
          Afinal, um mago consegue descobrir o motivo do misterioso fenômeno da transferência de poderes, a ação da fada. Zacharias perece, não resiste à desilusão de ter sido visto pelo povo na sua condição própria de disforme. O médico deduz que teve uma "morte humorística" - devido ao humor depressivo.
         A partir do Romantismo, o transformismo biológico se torna evolucionismo em sentido estrito, com o parâmetro darwinista de luta pela vida e seleção de caracteres adaptados impondo-se contra a ação própria dos organismos, de Lamarck. A questão do primitivo se torna aguda, sempre mais distanciada de qualquer fórmula do bom selvagem, ainda que nunca sem romper com a ambiguidade pela qual o primitivo é ao mesmo tempo origem da espécie humana e alteridade radical do Homem (civilizado).
          Outro item que me parece pertinente ao presente exame, é o locus da necessidade tematizada em Derrida a propósito do drama rousseauísta da escrita e da civilidade. Pois, também poderíamos notar que em vez de uma mesma estruturação desse drama na modernidade desde aí, o que estamos descobrindo na anteposição de Hegel e Schelling é que inversamente, a necessidade está assimilada pelo conceito da história, mas somente em Hegel ela se torna pensável como o parâmetro próprio da história.
              Ora, ao retornar à Estética de Hegel, podemos constatar que sua oposição entre o heroi do mito antigo e o protagonista do romance moderno contem mais um elemento importante a essa controvérsia. Pois, a oposição depende de que se compreenda que algo efetivamente aconteceu na História humana assim linearizável, a saber, a transformação do Estado.
        Conforme Hegel, "assim verificamos, de um modo geral, que embora o espírito possa, na situação atual do mundo, agir espontaneamente em certos casos e em certos momentos, ele nunca deixa de fazer parte, para qualquer lado que se volte, de uma ordem social estabelecida e, longe de ser uma representação total, individual e vivente desta sociedade, não passa de um membro dela com possibilidades muito limitadas".
            Há a meu ver considerável ambiguidade no modo como Hegel trata o heroi do mito antigo. Ao mesmo tempo em que ele é o que eu designei antes a pessoa agigantada, que pensa concentrada em si todo o sentido na perspectiva dos valores, por outro lado isso ocorre porque os valores dele são imediatamente os da totalidade social. Mas quando se trata do protagonista moderno, se já não se pode deixar de distinguir, por exemplo, pessoa e família, isso ocorre porque os valores não são aquilo que depende ainda de uma luta heroica e de uma afirmação sobre o oponente. Eles já estão invariavelmente em curso no âmbito das instituições estabelecidas além dos indivíduos particulares.
         A distinção entre personalidade antiga e moderno, na Estética, Hegel constroi mostrando que se na idade heroica o indivíduo "constitui a encarnação da totalidade do direito, da moral, da legalidade", nos nossos tempos modernos o indivíduo já não é "o portador e o único realizador daqueles poderes".
         Na modernidade o sujeito pode ter sua personalidade alargada ao infinito pelo seu caráter, pela sua alma, e no entanto, o direito dele permanece tão limitado quanto ele mesmo enquanto indivíduo e não totalidade. Assim, a meu ver Hegel está colocando o mundo antigo em termos do que podia ser representado como uma totalidade e por isso retratada a totalidade em cada indivíduo, enquanto o mundo moderno não é totalidade, mas conjunto de insituições articuladas as quais não são pensáveis pelo paradigma de um indivíduo, mas nessa articulação e enquanto o que nelas se presentifica são as questões do domínio público, do múltiplo em vez do uno.
       Mas o acontecimento da modernidade, linearizando a história, depende conceitualmente de uma instrumentação da visibilidade da margem como selvageria ou ausência de instituições. Em Hegel a constituição subjetiva presente depende da realização objetiva dos nossos laços intersubjetivos tal que a interconexão da subjetividade é intrínseca à linearização da História. Permanecendo à margem dessa interconexão da subjetividade, o indivíduo puro, sensível apenas em si, é uma abstração ou uma realidade quase inumana.
            A idade heroica é o lugar do progresso ao estágio presente da realização da liberdade - ou da maturidade psíquica tornada possível. Em vez de ter inviabilizado o compromisso europeu, Hegel o tornou discursivizável a partir dessa universalização do fator progresso. Mas devemos notar que se isso implica a superação da aporia da necessidade, do mesmo modo implica a conciliação da alteridade radical pensável - sob relevo, sob o crivo do que precisa sofrer o trabalho do negativo para chegar à síntese histórica do presente, a sociedade de direitos civis.
          Creio que ao examinar os lineamentos teórico-críticos de Edgar Allan Poe, é mais conforme a Hegel que ao citado de sua influência por Schelling e os Schlegel, que está focalizado o seu interesse.
          Hegel efetivamente realiza a leitura da literatura romântica na Estética, enfatizando que nela, como especialmente em Schiller, o que se encena é uma aspiração legítima da humanidade. Nesse ponto, portanto, temos precisada o que seria a famosa anteposição de Hegel aos românticos. Na verdade, sua crítica se dirige somente a Fichte, os Schlegel e Schelling, onde para Hegel o homem ideal foi reduzido ao designado “eu abstrato e formal”, e então sua críticaé que o “eu” nessa posição não realiza qualquer substancialidade precisamente na arte se a ele se atribuiu, consequentemente, toda operosidade da produção estética.
        Quanto a Schiller, a revolução que ele instaura é descrita por Hegel em termos que resumem bastante bem a vulgata hegeliana dos nossos tempos. Há os homens particulares e o homem ideal, mas este já modernamente interpretado não nos termos de gênero e espécie, e sim histórico e social. Entre ambos os níveis da realidade, o Estado tipifica o homem ideal, e se realiza pela mediação cultural, precisamente “estética”, que suprime da individualidade o que a separa da idealidade.
         Assim também, para Hegel, Winckelmann já não limita a contemplação do belo artístico antigo aos parâmetros da mímesis como realização somente da forma, e nele procura inversamente, como o que se deve buscar em todo produto estético, a ideia cultural que o anima.
       A substancialidade é, ou seria, “ideal”, portanto, se por esse termo nós temos o especificado por Schiller como a mediação histórica cujo resultado deveria se o Estado. São o que hoje se designariam funções universais humanas tais como a reprodução ou a atividade econômica, em Schiller-Hegel posicionadas como o que é “sensível” ao modo das “inclinações, tendências, sentimentos e impulsos” dos homens particulares, a serem, como hoje redutíveis a funções, simbolicamente traduzidas em cada sociedade pelos papeis, ritos e costumes correspondentes, ou nas palavras de Hegel nas “representações genéricas do que é moral, conforme ao direito e à inteligência”, o que estará plasmado na letra das leis do Estado como o que é “razão”.
        Assim, aqueles elementos sensíveis são levados a “participar na razão” e esta, como “espiritualidade”, se vê livre de tudo que se limita ao “abstrato”, se pela arte e cultural tais elementos vem a ser objeto de uma “formação”. Inversamente, em se tratando do romantismo dos supra-citados a partir de Fichte, o artista teria que adotar “esse ponto de vista de um eu que tudo põe e destrói, para o qual conteúdo algum é absoluto ou existe para si”, e então “nada aparecerá aos seus olhos com um caráter sério e só atribuirá valor ao formalismo do eu”.
            A leitura da literatura de Schiller na Estética hegeliana se coloca, porém, como um lance a mais entre o sensível e o espiritual, o homem particular e o ideal, o indivíduo abstrato e a intersubjetividade realizada (Estado): "Por mais fundado que seja, o nosso reconhecimento do que há de útil e de racional na organização da vida política e civil evoluída, jamais poderemos renunciar à exigência de uam liberdade individual e de uma independência vivente e real, nem esconder o interesse que esta liberdade e esta independência tem para nós".
            Assim trata-se de admiração por essa literatura, que como a do jovem Goethe encena "as complicações preexistentes da vida moderna, a perdida independência individual". Karl Moor "revoltado contra a ordem existente e contra os homens que abusam do poder" rompe com a legalidade mas sua audácia, com que ele derruba as barreiras e reinstaura o direito, mas na verdade ele não consegue superar os limites de sua ação individual. Por isso, sua vingança está condenada à ineficácia. Os meios empregados são insuficientes, posto que comportam em si mesmos a injustiça que quer abolir. Torna-se Karl Moor uma espécie de ideal do salteador que apenas impressiona a juventude.
             A "revolta contra a sociedade burguesa" está fadada, segundo Hegel, a um passadismo que tem na "estrutura feudal da Idade Média" o seu "terreno favorável". A ação heroica é a tentativa de restaurá-la, mas a ordem fundada sobre a legalidade, se já completou sua estrutura, de caráter inteiramente prosaico, a aventura heróico-galante só pode terminar no fracasso de um anacronismo, ainda que grandioso - propriamente heróico. A alternativa, continuar o ideal anacrônico apesar do fracasso constatado, é em vez do grandioso, o ridículo cômico, como o Dom Quixote de Cervantes.  
          Aqui me parece residir o motivo estruturante da filosofia da história hegeliana, que se preserva a partir daí no marxismo e na psicanálise lacaniana. A primitiva ausência da instituição deve encontrar seu limite no primeiro déspota - assim como diante do espelho, a criança desperta de sua incapacidade neonatal e pela primeira vez tem um vislumbre da unidade de sua auto-representação, unidade que no entanto, nós sabemos ser apenas representação, ao mesmo tempo toda a superioridade do homem ao animal.
         O despotismo e a confusão inevitável do Saber com Poder não são, porém, opressões sobre a liberdade do primitivo ou da criança a ser disciplinada. São o primeiro passo na escada da evolução, que conduzirá, de luta em luta, das formas hierárquicas da representação social até a forma democrática das instituições civis. A liberdade do primitivo não é democracia, é anarquia - posto que, condição instrumental desse discurso, não se reporta do primitivo a presença de instituições sociais estáveis. O primitivo e a criança não tem, portanto, consciência de si.
          A influência de Hegel no Brasil não se fez no panorama do Romantismo, e sim somente do pós-positivismo, ou seja, a partir dos pensadores da Escola do Recife, especialmente Tobias Barreto. Conforme opinião comum, o Romantismo brasileiro ignorou a história e centrou-se apenas na psicologia - especialmente Cousin e Biran.
          A meu ver, se realmente Hegel é uma influência mais tardia, aquela versão abstrai o fato que se encontra nos estudos históricos, da intercomunicação do socialismo francês aos nossos movimentos políticos anteriores ao Positivismo, especialmente a Praieira de meados do século.
          O Romantismo brasileiro focalizou,  por outro lado, mais o parâmetro não linear da história que havia se popularizado mesmo na Europa como um espiritualismo nacionalista de que fala Carpeaux a propósito de Dostoievski, isto é, algo cuja oportunidade está mais ligada ao caráter marginal de certos povos no Velho Continente- Carpeaux chega a colocar esse movimento russo em contraposição à religiosidade européia. Trata-se de uma doutrina da missão histórica de cada povo. Como assinalei, a interpretação da história como mediação cultural e conciliação espiritual do Saber admite essa extensão, não obstante o fato de que na Europa isso serve a algo mais que é a estruturação do compromisso da centralidade europeia.
           O que devemos notar a propósito da estruturação hegeliana desse compromisso, é o que se depreende da sua leitura do romance romântico da revolta do indivíduo. Ela não é precisamente, individual sem ser heroica. Hegel começa afirmando que se trata da aspiração de cada um pela liberdade, mas de fato o que se encena segundo ele  é a lealdade a um ideal social cavalheiresco anacrônico, uma aspiração da totalidade social que a sociedade burguesa impede. Resta que é a sociedade burguesa, não a feudal, que aparelharia o que há de legítimo na aspiração libertária do sujeito nos termos da justiça ou direito.
           A literatura encena uma situação, não um impoder do particular sem ser ao mesmo tempo o emblema da "possibilidade" da sua representação enquanto particular. "Não essa mesma representação", conforme Hegel. Não se trata, portanto, da cisão do real e do ideal, mas do movimento histórico que ordena um espelho da leitura - nós julgamos o heroi vencido, e apreendemos o que lhe faltava, porque estamos historicamente instalados ulteriormente ao seu parco ideal. Hegel parece querer conjurar a totalidade ou o seu retorno na forma do ideal.
        Já nos Eua, pelo que se pode ver pelo exame das concepções de Poe, é esse o escopo de sua influência romântica, mas transferindo o fantasma da totalidade ao espectro de um nacionalismo que implicaria a abstração do que ele almeja - a instituição literária funcionando independente do indivíduo confundido com o agente da nacionalidade.
           Creio que não obstante as aparências, a literatura internacional como estratégia de Poe não era um literário anti-nacionalismo ou uma censura da cor local, como se pode depreender pelo fato dele expor o momento de afirmação nacionalista desde a base de uma compreensível revolta contra o fato de que “por muitos anos” os americanos “encenaram uma completa farsa de subserviência aos dicta da Grã-Bretanha”.
         É verdade que o artigo centra-se somente na oposição ao conceito de literatura nacional qualquer :”Mas a palavra-chave”, presentificando-se a revolta,  foi segundo Poe uma literatura nacional como se alguma literatura pudesse ser nacional – como se o mundo inteiro não fosse o único palco adequado à literária “histrie” - esse termo “histrie” parece típico do vocabulário estético a que Poe afinal referencia explicitamente aderir, o de Schlegel, que nas Lições de arte dramática havia identificado o termo histrião, para ator, tendo origem no etrusco.
         Poe fala da estética romântica como uma ciência da literatura a ser designada "criticism", do mesmo modo que Henry James, e assim não poderia haver uma literatura particularizada, ao mesmo tempo em que toda particularidade seria conceituável como caso dessa ciência. Ela se constituiria como um ponto de vista superior às oposições de que trata. Mas essas oposições tornam-se sobremameira importantes. A partir do momento em que podemos tratá-las como códigos culturais, vemos que repõem a polêmica instaurada pela linearização hegeliana da história.
          Vamos de fato encontrar a mesma controvérsia Hegel-Scheling a partir da redução psicanalítica, mais do que apenas pela censura marxista da literatura como o que deve se limitar ao "realismo socialista".
        Assim como exemplarmente em Lacan, todos os códigos culturais existentes e a conhecer teriam que ser reduzidos à linearização histórica cujo termo é a emergência do Sujeito pensável, correlato da sociedade contemporânea democrática, onde está em trânsito a superação do Poder como efeito do significante - a partir dessa evolução produzida pelo próprio movimento do significante, ou seja, pela história do Saber cujo termo é a ocidental descoberta psicanalítica.
       O pós-estruturalismo é em geral uma recusa dessa linearização histórica, a partir de uma crítica mais profunda do Saber e do Sujeito desse Saber. O ocidente não conduz senão ao Imperialismo, em vez de à liberdade. Mas de fato, como já assinalei, o pós-estruturalismo não realiza o que promete, não constroi alguma verdadeira ruptura para com a pretensão ocidental de monopolizar a natureza do desejo além do discurso. Aqui poderíamos tematizar o inconsciente esquizoanalítico de Deleuze-Guattari para mostrar como o seu a priori esquizofrênico não logra romper como pretende, com o princípio de identificação inconsciente que move basicamente o esquema psicanalítico.
       É interessante notar que nos anos oitenta e princípios dos anos noventa, Deleuze e a esquizoanálise foram aplicados para renovar o interesse pela obra de Oswald de Andrade numa base do que seria o seu projeto de nacionalidade como heterogênese. Ora, o que não se acentuou foi que Oswald tem ele mesmo uma concepção de história e de inconsciente não-freudiano, crítico de Freud, os quais não são apenas antecipações rudimentares do que a esquizoanálise teria desenvolvido mais amplamente.
         Pelo contrário, pode se utilizar as formulações de Oswald como crítica do parâmetro ocidental estruturado pela base até o pós-estruturalismo inamovível, da concepção das sociedades igualitárias como sem Estado, ou, inversamente segundo a sociologia compreensiva, "comunidades tradicionais" -  cujas instituições existem, contrariamente a Hegel, mas do mesmo modo que em Hegel, elas são fundamentalmente a-históricas, uma totalidade de funções tal que não há sujeito independente, há apenas indivíduos confundidos com o seu papel social, encarnação dos valores da totalidade tradicional.
          Mas Oswald utiliza-se de uma concepção nomeadamente dialético-hegeliana da história. Parece que ele reinstrumentalizou o pensamento hegeliano a partir da sua interpretação das informações da Antropologia social (empírica) do século XX, e especialmente relativa ao entorno aborígine local.
         Ao desenvolver a seguir a sua colocação  da heterogeneidade dos códigos assim como se tornou o problema da  teoria do inconsciente, espero estar introduzindo aportes oportunos à leitura de Doctorow.

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         09 / 11 ; 14 / 11

           Ao examinar os camponeses dos quadros da  fase bretã de Gauguin, e lembrando que ele mesmo teve uma infância no Peru, sendo sua biografia intensamente relacionada à luta anti-colonialista no Taiti, não há realmente como imaginar-se alguma desfiguração idealizante de magnitude tal como a que Jameson supôs necessária à pintura dessa temática assim como ela resulta em Van Gogh.   
          Para Jameson ("The cultural logic of  late capitalism") o modelo do campesinato não pode ser em si algo de valor estético, tratando-se, ao invés, de "caricaturas de alguma grotesca última categoria tipológica dos tipos básicos da aparência humana" ( "The people of the village are worn down to their skulls, caricatures of some ultimate grotesque typology of basic human feature types").
         A referencialidade objetiva nesse caso é o mundo da "miséria agrícola, da absoluta miséria rural, a do mundo humano totalmente rudimentar do pesadíssimo trabalho do campesinato, um mundo reduzido a seu status mais brutal e ameaçador, primitivo e marginalizado", onde "as árvores frutíferas" somente "são antigas e exaustas estacas subindo do solo pobre".
        Mas eis que, a princípio inexplicavelmente, "em Van Gogh tais coisas, como as macieiras, explodem numa superfície alucinatória de cor, enquanto seus estereótipos camponeses são súbita e brilhantemente recobertos de matizes de vermelho e verde" e Jameson se pergunta como pode ter vindo a resultar assim ("How is it...?").
        Sua resposta é que se trata de um gesto utópico, transferindo a um reino separado (fragmentado) da sensação, a visualidade pura, a glamourização que estaria sendo desejada acontecer daquele mundo na concretude histórica. Desejo impossível, gesto desesperado, mas conservando essa motivação social ou utópica que, inversamente, no pós-modernismo de Andy Warhol estaria radicalmente ausente. 
          O mesmo tema, os sapatos, em Van Gogh sapatos de camponeses, em Warhol objetos fetichizados como mercadorias atraentes do mercado, pertenceria a universos estéticos irredutíveis, modernismo e pós-modernismo. Warhol neutraliza todo referencial real que pudesse despertar a motivação qualquer. O referencial do mais superficial tratamento da figura seria somente o negativo de uma foto, pois a coisa mesma é apenas a sua imagem publicitária.
          Inversamente a essa perspectiva jamesoniana em que a meu ver podemos discernir uma centralidade do belo na arte, e dos  referenciais possíveis do belo como urbano-ocidentais, A História da Arte de Gombrich focaliza a geração de antes da primeira guerra reunida em  torno da "admiração pela escultura negra", máscaras e esculturas originárias da África que estavam sendo importadas a baixo preço na Europa, e produzindo grande entusiasmo nesses artistas jovens: "expressividade intensa, clareza de estrutura e uma simplicidade linear de técnica" é o elemento que segundo ele se comunica dessas produções africanas aos três grandes "rebeldes solitários, Van Gogh, Cézanne e Gauguin".
       Esses elementos substituem decisivamente a "fidelidade à natureza" e a "beleza ideal" como princípios da arte europeia. Gombrich já havia falado dos desenhos japoneses ornando as caixas de chá comercializadas nessa época como também uma influência importante nesse sentido, pois a perspectiva é ex-centrada, estranha ao enquadramento consequente da forma europeia. Os trabalhos de Gauguin estão impregnados de referências à arte budista.
            A meu ver, a importância na biografia desses artistas, Van Gogh e Gauguin, das suas estadias em regiões campesinas, especialmente quanto a Gauguin, autoriza a supor que para eles a matéria escolhida era a de maior significação do ponto de vista estético, enquanto que paralelamente na Europa as vertentes do decadentismo e naturalismo acompanhavam o cenário pós-positivista onde decaíam os padrões de vida pelo crescimento da cidade industrial, mais os conflitos precursores da guerra.     
           A geração de antes da primeira guerra é o ponto de convergência entre a biografia de Oswald e a cena de Ragtime, nos Eua. A Europa de princípios de século é a que Oswald visita, e seu retorno ao Brasil após o contato com as vanguardas é um acontecimento decisivo nos rumos da nossa renovação artística, no entanto já em curso a partir da trajetória de Anita Malfatti na pintura, Lima Barreto e outros na prosa.
            A eclosão do "modernismo" coloca assim, ainda hoje, uma questão cultural de marginalidade e centralidade cujo desenvolvimento, ramificando-se como se possa conceber  em tantos focos temáticos,  implica no entanto um posicionamento político, e essa interligação é o que me parece, ao exame de textos candentes ligados ao registro dos próprios artistas, ter sido a pedra de toque do comprometimento existencial de suas carreiras. 
          A questão e o que ela implica reflete hoje aquilo que estava se originando nesse mesmo horizonte histórico tratado agora apenas, contudo, como objeto de sua aplicação.
        A reflexão me parece discernível no ponto em que, introduzindo o trecho do paralelo a estabelecer entre Van Gogh e Warhol, Jameson sugere ("I first wanto to suggest...") que para utilizarmos sua pintura de modo a não reduzi-la ao mero nível decorativo, aqui nos lembramos imediatamente que reproduções aos milhares das imagens de seus quadros são constantes em qualquer ambiente comercial hoje em dia, seria preciso instalar "uma situação inicial da qual a obra finalizada emerge".
        Nesse ponto o que vai ser desenvolvido no contraste dos dois artistas está condensado. Conforme Jameson, "sem que essa situação - que desapareceu no passado - seja de algum modo mentalmente restaurada, a pintura permanecerá um objeto inerte, um produto reificado e impossível de ser tomado como um ato simbólico em seu direito próprio, como praxis e como produção".
           Essa reificação é a famosa fórmula jamesoniana para o pós-moderno, e compreende-se porque é preciso que os sapatos dos camponeses de Van Gog seja um gesto transformador. Só assim há algo de prévio ao fazer da arte, algo a que atribuir o seu sentido, ainda que o haver do sentido aprisione a praxis no modernismo, como o que já não se faz atualmente.   
           Mas também me parece expressiva essa reserva da situação inicial, de um ponto de vista sobre a história - como vimos, é o essencial da hegeliana estruturação da legalidade, o que a inversão dialética de Marx conservou primordialmente de Hegel.
           A história como o fiat do sentido, só pode ser conceituada a partir dela ter um começo que exclui o primitivo do mesmo modo que vai açambarcar todo o desenvolvimento de um lado oponível aquilo sobre que, em relação a que, o desenvolvimento possa estar dito sendo feito. Aqui toda consideração inteligível extrapola o caminho conceitual que parece estar tentando assegurar como o de uma "lógica", e se trata, inversamente, da aparência, da boçalidade, da pré-lógica, tudo como objeto de um só juízo quanto ao obstáculo à luta histórica.
          Jameson realmente estabelece - num texto que encontrei na Internet, supondo-o autêntico - um starting point, um início,  também como requisito teórico de que tudo o mais decorre conceitualmente. Não observa que o início põe um paradoxo como se tem feito ver na física, pois, como tal, ele precisaria se destacar de algo que lhe pré-existe, já que não se o pode definir a partir do que se desencadeia após ele mesmo ou se trataria de um círculo vicioso quanto à definição desse "quid".
          A questão cultural da conciliação em termos do quid da história,  como estávamos examinando, opõe na cena inaugural da contemporaneidade ("modernidade") Schelling e Hegel, mas a reencontramos recentemente atribuída a Hegel.
          Ao examinar a questão da adesão heideggeriana ao nazismo, Lyotard referencia o anti-semitismo como estando embasado no que seria uma concepção de cultura europeia produzida desde Hegel e mesmo tendo sido o caso do seu julgamento a propósito da situação dos judeus como devendo-se a que eles recusam a "conciliação" de que precisariam para nela serem integrados. Uma vez que preservam sua identidade cultural, portanto, retruca Lyotard, mordaz, e que assim pensa estar situando a estruturação do discurso preconceituoso.
          Contudo, deveríamos notar que o juízo de Hegel permite ser lido como o de alguém que desejaria a conciliação, enquanto Heidegger não a desejaria. O que mudou nesse ínterim é o que precisa ser colocado a propósito da concepção de história tal que como vimos, desemboca num presente de sua imobilidade estrutural opositiva a toda anterioridade.
          Afinal, como ainda disputam hoje os comentadores de Hegel, o que aconteceu na história em termos do advento da legalidade implica que a história tinha se completado na enunciação hegeliana, ou, pelo contrário, Hegel pensava que ela estava ali começando? Entre Hegel e Heidegger, o intervalo é preenchido por Marx que como se sabe, teve sua interpretação conducente a um estruturalismo que resolutamente optaria pela primeira opção desde que modulada pela inversão materialista que Marx lhe sobrepôs.
        A história era dos Românticos, mas o que ela enunciava era a modernidade como seu telos. Ora, a modernidade é a enunciação da luta de classes, e se esta ainda não realizou a transformação do modo de produção, mais nenhuma história real subsiste que não a transformação por vir, a qual não é representável, é estrutural.
         Mas essa inversão é o que assinala o plano de fundo de uma trajetória cultural cada vez mais inconciliável com essa teleologia. O que a inversão transpõe é a pertença categorial da "burguesia" como parâmetro da realizada legalidade. Em Hegel, a burguesia não é uma classe econômica, mas a assinalação de uma categoria política, locus do conceito de Estado contemporâneo.
          A redução economicista da categoria de burguesia como classe implica que a reação pós-positivista, como cenário da produção heideggeriana, tem por objeto não o locus político da sociedade civil hegeliana, mas o locus "técnico", econômico, da sociedade de classes marxista.A heterogeneidade deixou de ser de fato pensável, e o oposto da sociedade técnica se torna a sociedade tradicional, espelho do feudalismo como totalidade de sentido.
         Ora, a conciliação na cultura não está ausente do horizonte hegeliano, mas precisamente porque  o Estado de direitos constituicional é um nível oposto ao privado, como vimos, a cultura não mais pertence a essa esfera. A conciliação não pertence a ela, e a renúncia, se de renúncia se trata,  não é da identidade cultural em favor da solvência num todo político alheio e estranho, mas sim do nexo - que Durkheim conceituaria mecânico - entre identidade cultural e pertença político-estatal. Pelo contrário, Heidegger não pode desvincular uma coisa e outra. Os totalitarismos são homogeneizações de cultura e Estado de modo que necessariamente se segue a segregação do heterogêneo.
             A questão da arte evolui a partir daí, nessa clivagem de suas reduções homogeneizante-culturalistas por um lado, ou homogeneizante-marxistas por outro lado. Todo o cenário do surrealismo está impregnado por essa polêmica. O artista é marginal, porque crítico da "sociedade burguesa", mas isso significa que sua crítica se endereça ao primeiro ou ao segundo dos termos dessa expressão? Como Trotski, deve supor que a arte é revolucionária, mas a revolução é a luta de classes, ou, inversamente, que ela é revolucionária culturalmente?
           A limitação sofre uma inflexão decisiva, em função de que se desdobra o alto-modernismo, tão oposto ao ambiente das vanguardas de até os anos vinte.  Enquanto a arte não-ocidental assim como a realidade social não-ocidental em ciências humanas, fecunda como vimos todo a produção europeia de inícios de século, assiste-se agora, em 1938, à grande síntese universalista de Lacan,  onde conceitua o "matriarcado" como cultura de estereótipo, limite mental de aceder ao nível de produção cultural do ocidente que se deriva do fato da família patriarcal e se desdobra nessa modernidade que é a família nuclear burguesa ocidental.
            Theodore Abel critica Parsons por ter, por essa altura, proposto seu sistema social como integrando um único horizonte epistemológico totalizante da ciência moderna. Para Abel, Parsons não demonstrou qualquer conexão real nesse sentido, e produziu apenas conceitos sociológicos. Mas de fato Parsons inseriu sua produção num princípio epistemológico que estava sendo comum até na explicitada concepção de Heisemberg, o funcionalismo ou parâmetro da totalidade ("Gestalt"). Essa perspectiva implica que o sistema social parsoniano era um novo sócio-evolucionismo, como definiu Rocher.
           É significativo que uma publicação dos anos oitenta sobre as relações de Breton e o surrealismo com Trotski e o comunismo tenha reunido vários artistas de intelectuais brasileiros envolvidos nesse panorama histórico, inclusive Pagu,  mas não tenha apresentado nada de Oswald. A questão comum era a inevitabilidade do status marginal-crítico do intelectual interceptar a recusa da exploração de classes, mas ao mesmo tempo estar sendo o alvo de uma censura do Partido comunista, o protagonista dessa recusa. Oswald é um dos que mais exemplificariam o embate, mas se não deixa de ser referenciado, não é citado. Ao examinar o texto de Os condenados, entedemos um pouco, ao que parece, o motivo.
           A estruturação dessa época está portanto dependendo de uma oposição geral entre intelectuais e trabalhadores que teoricamente convergem numa mesma revolta contra a sociedade de classes ou técnica, ainda que não combatam com as mesmas armas. Mas entre os intelectuais há uma outra oposição não de todo convergente, entre ser ou não limitado em sua crítica pelo compromisso do Partido - ambiguamente com ou contra a técnica, em todo caso contra a exploração de classes. Entre os que não se limitam, a posição unânime é de um humanismo - otimista ou pessimista, trata-se do homem e do seu destino histórico.
            Os Condenados, de Oswald, inversamente, nos apresenta uma oposição indefinível a partir apenas dos termos. "O artista", que protagoniza o romance, recebe a visita de "os artistas" que a narrativa trata de desqualificar de um modo muito preciso, ligando-os por um nexo histórico ao produto que se trata de estar, respectivamente, criando e julgando.
          Trata-se do grupo escultório que o artista, Jorge d'alvelos, pelo que se sabe inspirado em Brecheret, elabora, e que esses artistas devem avaliar. O grupo tem por modelo a heterogeneidade social componente da história nacional desde a colonização. A desqualificação toma agora por alvo uma porção dessa heterogeneidade, o extrato colonizador cujo presente são precisamente os artistas, ou seja, a representação das elites acadêmicas.
        A linguagem de Oswald é extremamente crítica. Quanto a "os artistas", diz-se ser "um grupo de rapazes e velhotes" assim descrito: "Era um ajuntamento de partidos pelo meio, de semi-homens supremos que ensaiavam, numa incapacidade lancinante, atingir o que chamavam 'os estados superiores da terra'. Intitulavam-se os artistas da cidade. Alguns já maduros, aceitos em rodas pasmas, outros na angústia de lutas incompreendidas, aumenetadas pelas misérias de seus lares confulsos, os demais boêmios imprecisos, revoltados à-toa, todos os o íncubo de maldições e desastres".
      Com efeito, Oswald é crítico de Sartre, de quem afirma que não se surpreenderia se visse de repente convertido ao catolicismo, posto que sua revolta anárquica era apenas o reverso de um moralismo tal que afinal sua conversão ao comunismo se torna compreensível, se bem que do ponto de vista estético, teria sido preferível que permanecesse no "companheirismo" de Genet.
       O fiat histórico desse grupo de artistas da cidade ao tema escultório se controi: "Eram, com exceções, decaídos de famílias estabelecidas no continente num estouvamento de fidalguia, estendendo os eu domínio por gentes e escravos, campos e serras. O império dera-lhes baronatos, a terra trabalhada pelos hnegros dera-lhes ouro. E no país assombrado haviam-se vindulado a preconceitos tentaculares de glóroias paroquianas, feudais senhores de chapelão e barba, gerando numa sexualidade redobrada pelo degredo, rebentos inúteis e pomposos, falhos rombudos de orgulho nativo, pelaços anacrônicos da Meia_Idade portuguesa. O tempo trouxera a libertação dos escravos legais e as novas imigrações, E a terra cansara de dar a meda rubra na ponta verde dos velhos cafezais".
           A miniaturização da histórica pela segmentação de um só extrato protagonista prossegue: "Sobre a geração do Centenário, estalara a crise econômica no combate cego com as novas estirpes, vindas já depois da guerra e da revolução bolchevista, sem o trombolho dos brasões, o lastro pesado das fidalguias ilógicas, o aluvião dos bentinhos caseiros, das guinés morais, dos atavismos líricos e das canseiras históricas. " Nesse ponto, Jorge ergue-se, anda, e faz "desmoronar, da extensa prancheta, numa bola informe e ruiva sobre o chão do atelier, o passado crepuscular de seu povo."
          Mas devemos notar que inversamente a Gilberto Freyre, Oswald não pratica o ressentimento dualista que o funcionalismo permite ao reduzir a história da miscigenação a justaposição de extratos por natureza imiscíveis. Assim, Freyre pensa a oposição do negro ao branco, por um lado paternalizando o negro - ambiguamente, pois sempre se mostra que por natureza não é igual ao branco; por outro lado coloca as coisas em termos de competição - até mesmo entre os poderes sedutores das mulheres.  
          Não é que aqui se desconheça a crueldade do escravismo, mas quando Oswald trata a realidade colonial, sublinha o fato de ter sido um empreendimento de exploração conduzido por uma classe, não pelo povo português. Entre a classe dirigente e o povo português o que havia era do mesmo modo que na colonização, uma relação de dominação - assim, Oswald exemplifica com a Revolução do Porto. Ele tratou a história da revolução local efetivamente em termos de mistura cultural, e esse aspecto é que se tornou importante ao pensamento atual.
          Podemos notar aqui algo curioso. A temática da inconciliação na cultura, em Lyotard, é conexa à da ausência de split público-privado como atribuível ao que Kafka teria dito das minorias em geral, e dos judeus em particular, por Deleuze. Contudo, Oswald parece inverter esse andamento, pois a inconciliação na margem é o apanágio da classe colonizadora. A sua ridicularização não se deve ao aportar terra estrangeira, mas a canalização da cultura como dispositivo identitário segregacionista do que é precisamente nativo e majoritário nessa terra. Essa classe inventa procedimentos discursivos conservadores do seu status imiscível, e são tais procedimentos que passam a capítulos de uma história ideal da cultura.
          Ora, entre Deleuze-Gauttari e Oswald, a oposição quanto ao conceito de inconsciente se estabelece claramente. Ao derrogar algum starting point da lei na história, porquanto o matriarcado Oswald trata de um modo bem mais consoante as informações da antropologia social e da arte contemporânea, de modo que nem ausente de lei, nem de riqueza cultural, ele porém não rompe com a consequência da presença da legalidade moderna conforme a hegeliana conceitualização.
           Trata-se de  um nível público da civilidade que assegura a liberdade em nível individual em que transita a expressão na cultura, e isso por não se confundirem os níveis.  Mas conforme Oswald, esse era também o traço característico do matriarcado, e o que Hegel pensava ter sido o início da história era apenas o meio dela, o interregno da dominação patriarcal, dos depotismos aos feudalismos. Vem assim que para Oswald, o leitmotiv da arte como luta contra o regime - pelo motivo marxista e/ou humanista - não tem literalmente sentido.
          A modernidade é a realidade do regime independente da "sociedade", mas de modo que essa independência é o que permite a travessia do sujeito na cultura, e essa liberdade de atuação decorre da independência do regime. Mas entre Estado e sociedade não há uma contrariedade e sim uma complementaridade tal que é através do exercício positivo da cultura que as mudanças podem ter lugar ali onde elas tem sentido, ou seja, como mudanças sociais. Se não há um starting point, também não há uma teleologia. O regime e sua independência não é a verdade ontológica do homem, posto que não diz respeito ao sujeito, e sim à coexistência da heterogeneidade.
          Em compensação a arte não é o produto do intelectual oposto ao trabalhador, mas um mercado ou circulação onde tem trânsito o produto social do artista. Creio que todas as transposições ao pós-modernismo que Jameson considerou estruturais estão assim conceituadas, e podem ser exemplarmente características da atuação de Warhol. Oswald apenas as enuncia, não chega a transformar a cena histórica, pois o espaço de sua atividade no país e no tempo não permitiram que suas concepções extrapolassem a obra escrita. Não são portanto, reificações ou renúncias do sentido, mas só podemos entendê-las a partir do deslocamento do compromisso europeu.
             O Anti-Édipo, inversamente a Oswald, trata como dois inconscientes irredutíveis o primitivo e o civilizado, quanto a este, Edipiano e individualista. Contudo, se o primitivo é mais flexível do que o inconsciente despótico que forma o entremeio de si ao civilizado, por outro lado ele não é propriamente desterritorializante como o desejo que precipita o capitalismo. A essência do desejo é essa desterritorialização - Deleuze-Gauttari fazem o elogio das Grandes Navegações como se elas fossem apenas isso, não o genocídio da alteridade na margem, o que não ligam como algum fator que reste por explicar, à construção do seu conceito de inconsciente civilizado.
          Ora, a partir daqui podemos notar que também quanto ao fator epistemológico, transitando do Anti-Édipo ao Mille-Plateaux, de fato Deleuze-Guattari não rompem com a totalização do objeto que a onto-lógica identitária implica militando desde a Antiguidade no terreno da filosofia mas daí sendo desdobrado como estruturante do discurso da unidade cultural do Ocidente desde os gregos até a atualidade. É essa ruptura que Oswald enseja expressamente, em paralelo ao seu ex-centramento histórico da problemática hegeliana da "civilidade". Examinando-a, o texto pós-moderno se torna conceitualizável.


    14/11

       O interesse pela obra de Oswald de Andrade - que se assinava "OA" - se assinala em tres momentos. A movimentação modernista o projeta como um dos participantes antológicos, o que o incidente com Mario de Andrade, que o tachou de errado por tê-lo chamado de "futurista", não prejudica de todo. Os concretistas após os anos cinquenta renovam o interesse por sua obra, a essa altura achincalhada tanto quanto sua pessoa. Mas esse investimento foi feito pelo procedimento exclusivista dos "concretos". Só valorizavam do passado o que podia servir de precursor ao que identificavam como sua descoberta revolucionária, a expressividade do significante.
           O que não servia a isso, era considerado nulidade, mas como espero ter ficado claro, a meu ver esse não é um traço raro por aqui. Pelo contrário, cada importador das novidades europeias se proclama o iniciador da história, com as importações pregressas definidas apenas como obsolescências. Quanto a isso, os concretos só inovaram por considerarem-se menos importadores que transformadores das revoluções epistemológicas em inovação estética, mas de fato essa conexão, com o que tem de bom e mau,  já era um caminho em curso desde Mario Faustino na crítica literária - como seu artigo sobre Mallarmé ("Poesia experiência").
         OA não se caracteriza por ele, tendo sua carreira evoluído como interlocução permanente do cenário cultural nacional e internacional, a partir de uma formulação teórica própria e voltada à heterogeneidade cultural da nossa formação, especialmente com vistas a alargar o conceito de história para abranger a anterioridade da colonização uma vez que um dos extratos miscigenados já estava presente na porção territorial.
         Ora, a possibilidade conceitual de se pensar a heterogeneidade não existe no funcionalismo, nem no estruturalismo. OA de fato a logrou pela índole de sua formulação teórica que, como assinalei, era efetivamente adequada ao objeto porque suas categorias foram produzidas pelo exame dele.
        O pós-estruturalismo estava interessado precisamente nessa possibilidade, e então o terceiro momento da renovação do interesse pela obra de OA, nos anos noventa,  ocorre pela possibilidade de utilizá-la como precursora da teoria pós-estrutural do Anti-Édipo, onde um "inconsciente selvagem" (tribal; territorial) é postulado paralelamente ao "inconsciente civilizado" (capitalista; edipiano).
          Mas OA não se pautou por qualquer antecipação disso que se examinarmos bem, mantem a impossibilidade de pensar a miscigenação ainda que supondo estar conceituando a alteridade, digamos, contrapondo-se ao universalismo lógico do inconsciente straussiano. A alteridade continua, assim, uma identidade imiscível a outra. Além disso, traçar os mapas de cada uma dessas identidades demarca a capacidade revolucionária do Saber ocidental, posto que cada uma delas não pode pensar a outra, distinguindo-se dela essencialmente (estrutural/formalmente).
         Ora, os "pós-estruturalistas" dos sixties, como Deleuze e Guattari, se laçam a partir de uma revalorização de Nietzsche e se utilizam de Hegel, como criticado de Nietzsche, ao modo de um emblema ao que se poderia reduzir o estruturalismo universalista de Lacan, Althusser e Levi-Strauss, não obstante estes não serem propriamente hegelianos.
            Na ambiência do "pós-modernismo" nomes que se destacaram como representativos de uma geração posterior aos pós-estruturalistas põem em cheque justamente essa utilização, afirmando, inversamente, um parentesco ou proximidade entre Nietzsche e Hegel,  não tanto no sentido de sua convergência, mas da dependência das formulações do primeiro em relação ao seu entendimento do segundo.
          A tematização dessa controvérsia se registra no texto de Robert Williams, “Hegel e Nietzsche: reconhecimento e relação senhor/escravo”. Como o tema sublinha o problema dessa relação, torna-se particularmente interessante para introduzir o pensamento social de Hegel, naquilo em que neste a rubrica se desdobra na transposição ou superação de um tipo de filosofia da identidade
             A apresentação de Robert Williams, envolvendo a polêmica pós-moderna com Deleuze, parece francamente favorável aos críticos da oposição pós-estruturalista. Assim, Williams exemplifica entre esses críticos, Walter Kaufmann, Daniel Breazeale, Judith Butler, Robert Solomon, Stephen Houlgate, Eliot Jurist, Philip Klain, Richard Rorty, Stanley Rosen e White.  Esclarecendo que Kauffman considera uma incompreensão tanto de Hegel quanto de Nietzsche supor uma “justaposição precisa” entre eles, sublinha ainda que nem todos os autores citados concordam quanto a essa afirmação.
           Ele inclui alusões aos estudos de Houlgate e Jurist, respectivamente sobre a crítica da metafísica e as teorias da ação e da cultura, como paralelos entre Hegel e Nietzche, mas não desenvolve esses temas. Em seguida propõe o seu próprio assunto como exame do problema do reconhecimento nesses dois pensadores, o que ao longo do texto se mostra como uma crítica ácida tanto de Nietzsche quanto de Deleuze, para salvaguardar a superioridade de Hegel quanto a todo esse tópico que o leitor descobre como algo mais abrangente, pois se estende como fundamento da teoria social que implica tanto o sentido existencial do sujeito na sua destinação para o Outro quanto o problema da dominação.
          A questão se tornou focalizada, a meu ver, em torno da inexistência de uma verdadeira teoria social no pensamento deleuziano. Isso pode parecer inexato, dados os conceitos desenvolvidos no Mille-Plateux como "agenciamentos coletivos de enunciação", "regimes de signos", ou "segmentaridades", mas o que ocorre é que essas são formulações destinadas precisamente a colocar como desnecessária, e de neurótica a paranóica, alguma concepção da realidade da "sociedade" existindo por si mesma, além do desejo como da formação psíquico-semiótica atuante nos indivíduos tomados na sua abrangência de coletividade.
          A alternativa sendo o "modo de produção", mas lembrando que Deleuze e Guattari não se consideram a princípio não-marxistas, uma vez que "materialistas", de modo que a semiótica em cada caso envolve todas as segmentaridades - a produção ou economia sendo caso do desejo ou energia. Uma outra alternativa sendo a "totalidade" do funcionalismo - uma fantasia de visão unitária do mundo que projeta na realidade apenas o poder de um grupo social que pretende reduzir os outros a si.
         Podemos ficar um tanto espantados com a crueza de um enunciado como o de George Gebner a propósito da comunicação de massas como um processo institucional: "Toda decisão de comunicar qualquer coisa é, ao mesmo tempo, uma decisão de excluir tudo o mais". Mas é isso que a hermenêutica heideggeriana - tão oposta à de Schleiermacher - tem ensinado todo o tempo a partir da lógica do "ocultamento".
        O que abstraem assim é o fato de que aquilo que é comunicado não é o sentido, o ser, selecionado conforme um comportamento existencial, mas inevitavelmente a contextualização da alteridade em relação a que se articula. O mérito do pós-estruturalismo como em Derrida, foi ter conceituado a real lógica atuante, a do fundamento-suplemento, pelo que não há o primeiro sem o segundo, em vez de ser uma exclusão tal como ocultar se trata, pelo contrário, de mais mostrar nesse status uma vez que é a própria escala de status que assim se constrói - por exemplo, a cena de exclusão da escrita, por Platão, na verdade é a cena da definição (do status) da escrita para uma linguagem idealista-oligárquica (metafísica).
        Ora, onde o pós-estruturalismo se mostrou limitado é que, como crítico de Hegel em geral, sendo o caso de Deleuze-Guattari em particular, ve na "sociedade" uma abstração assim como o seria uma história linear da humanidade. Mas podemos interpretar Hegel não como uma totalização identitária dos três níveis em que se articula seu pensamento - a teoria do Estado, a lógica dialética e a intersubjetividade "fenomenológica" (Não-husserl-heideggeriana). E sim a partir do que transita essa articulação, que é o movimento - não a redução identitária - da "alteridade".
         A transformação do direito privado induz mesmo a supor que é a alteridade que se torna o dado a pensar na transição da sociedade contemporânea. Pois, não mais se trata do referencial do direito ser uma igualdade coletiva como antes era referencialmente a tradição estamental da nobreza. Os outros estamentos, cada um servindo a uma lei designada "estado", o clero e os servos plebeus ("terceiro estado"), a história estava reduzida à ação moralizante/territorializante da nobreza, e deste paradigma o funcionalismo pós-positivista generalizou a noção de sociedade tradicional oposta à de sociedade contemporânea (ocidental, industrial).
         Como já assinalei, é preciso notar o que ocorre no ínterim, aqui podendo mais uma vez mostrar que se trata de uma mudança na filosofia da história que se trata de reconceituar como nascente "sociologia", ou seja, dominando-a ou totalizando-a a partir de categorias sociológicas que expressam a renúncia a pensar a alteridade ou devir. Essas categorias foram o ethos de grupo comteano e o modo de produção marxista.
         Mas que impulsiona essa renúncia, senão a marginalização da pequeno-burguesia como referencial da transformação social da contemporaneidade, em função da grande-burguesia nesse status referencial histórico, uma vez que a categorização sociológica marxista ou comteana implicava a redução a um estruturante básico, funcional, do que Hegel havia pensado como "sociedade". Essa implicação é coordenada ao que expressa, a transformação do capitalismo-monopolista que marginalizou a livre-empresa cujo agente era a pequeno-burguesia.
             Tenho tratado esse tópico em termos de algo fundamental ao andamento da história da literatura, posto que o agente recalcado ou marginalizado pela categoria sociológica de modo de produção e ethos de grupo é o que vai produzi-la enquanto contemporânea, mas se é assim, ela não é espaço da enunciação do indivíduo à Benjamin, ou do Sujeito edipiano, mas sim do "ex-cêntrico", aquele que expressa a realidade de "sua" marginalização. Ele não pode ser uma voz coletiva, posto que não é a representação do estamento, mas justamente também não pode ser o Sujeito constituído pela projeção categorial "sociológica", como vimos, como proletário (modo de produção) ou grande-burguês (ethos de grupo).
            A sociologia do século XX que não é o prolongamento dessas categorizações seja como preservação, seja como críticas que não rompem com a armação de sua inteligibilidade, veio a ser a sociologia empírica, que pretendo examinar posteriormente. Mas essa é o que se marginalizou como se poderia esperar, pelos grandes relatos, que do funcionalismo ao pós-estruturalismo, protagonizam o processo assim descrito.
          Ora, a filosofia da história começa em Hegel, mas nele, dado por um lado, o estado para nós rudimentar do conhecimento da alteridade cultural de sua época assim como a limitação da revolução científica, ela não se produz pela necessidade de equacionar determinismos sociais, econômicos ou evolutivos, e pelo contrário, produz-se para equacionar a transformação do direito que implica a alteridade, o que Weber erroneamente confundiu com "impessoalidade" para depois imbricar como transformação social à outra questão, a da transformação econômica, definindo assim um ethos capitalista.
         Pretendo também, a seguir, mostrar como o que se costuma atribuir a Hegel, na verdade é o que ocorre com Weber, pois a trama dessa imbricação ele haure a partir do que supôs a emergência do sujeito privado a partir do protestantismo com sua mensagem de salvação pessoal e eleição independente dos sacramentos. Mas porque não seriam os judeus, os promotores do capitalismo, ou de que modo se pode minimizar a existência de transações "impessoais" desde muito antes do capitalismo contemporâneo, ou ainda, como se pode desvincular tão radicalmente o capitalismo industrial da burguesia de exploração colonial?
            Na filosofia da história de Hegel, podemos notar que ainda que subsista a questão de se ele pensou estar enunciando o telos do processo de mudança histórica, ou o seu início, em todo caso o presente da sociedade contemporânea não poderia ser senão uma realidade em devir, aquela que se compreende lendo os jornais em vez de procurando saber quem são os dignatários dos estamentos imutáveis na sua composição. Em todo caso, o telos da história será uma sociedade histórica, em devir por natureza, não uma outra composição sistêmica alternativa à estamental-tradicional.
       Mas essa história da sociedade histórica não poderia se confundir com a filosofia da história, ou com o processo mesmo do qual ela resulta. Esse processo é paralelo à fenomenologia do espírito, assim como à descoberta da lógica dialética, posto que ele é o processo de superação formal, objetiva, realizada pelos sujeitos, da lógica identitária que por sua vez regeria a leitura da sociedade em termos de quididade ou natureza tradicional imutável - assim, o próprio modo de produção é ou resulta, ainda uma quididade nessa acepção do que Hegel desejava superado.
        O que os pós-estruturalistas criticaram mais explicitamente que Nietzsche, ainda que calcando-se neste, foi o seguinte. Sabendo-se que Hegel construiu essa noção de sociedade em devir a partir de ter descoberto o desejo como desejo do outro, como na luta do senhor e do escravo que não é pelo poder senão como reconhecimento por um deles, da natureza de Sujeito do outro, de modo que esse reconhecimento pelo outro é a essência do desejo dos sujeitos, não se explicou como é que o outro vem a ser conceituado outro desde o inconsciente.
           Lacan  já havia mostrado que, aceitando-se a dialética do desejo do outro hegeliana, na verdade nós compreendemos o efeito do inconsciente, mas não a sua causa profunda, posto que o outro da consciência não pode estar no inconsciente onde só habita a pulsão ou, como o próprio Lacan inova em relação a Freud, o percurso do significante que, ele, é Outro em relação a nós conscientes posto que é todo-outro, nenhuma transcendência o constitui.
         Lacan e os pós-estruturalistas veem nisso, um para desculpar Hegel, os outros para melhor criticá-lo, o resultado do desconhecimento de Hegel da física energética termodinâmica que só se enunciou na segunda metade do século XIX, o princípio de  que a energia não é ilimitada, e os processos energéticos tendem ao mínimo, à cessação, não o contrário. Essa tendência explica a natureza mesma dos processos. O determinismo energético serviu para manter a esquematização categorial das lógicas identitárias mesmo na decorrência da ciência do século XX emergente, não determinista como a do positivismo do século anterior.
          O que devemos notar é que se Lacan faz a defesa de Hegel na base apenas do que teria sido sua insuficiência, isso se deve a que Lacan já estava lendo Hegel como uma redução factual da filosofia da história, transpondo o processo hegeliano ao modo da completude do Édipo, facultada na sociedade ocidental contemporânea como telos de uma comunidade do Saber tal que o significante teria afinal completo seu percurso de total independência, agora tornada visível e desejada, do Poder (identificação "tradicional"). Na medida em que os pós-estruturalistas não concordam com essa visão otimista da sociedade ocidental, eles não podiam aceitar o percurso ou a teleologia, mas se enredaram num mesmo parâmetro identitário que tanto quiseram superar, por outros motivos.
        Um deles é que, por outro lado, desde Lacan já se estava consciente de que a superação de Freud só poderia ser feita se alguém lograsse de algum modo injetar alteridade no processo inconsciente, de maneira que o processo do desejo não mais se confinasse à leitura repressiva freudiana, por onde a sociedade nada mais é do que a instância de repressão da individualidade, e assim dialeticamente se torna o mecanismo pelo qual a individualidade se afirma nessa sua irredutibilidade ao outro formado como seu oposto totalizante do social.
          Em vez do recalque da pulsão para tornar-se inconsciente, a partir da educação sanitária e da imposição de regras de conduta na infância, em Lacan trata-se da positividade do significante como instância operatória da transformação psíquica dos meros impulsos em sinais e circuitos ativos. O "simbólico" seria o coroamento dessa transformação como investimento positivo do signo socialmente circulado, enquanto que em vez do hiato abrupto da connsciência ao inconsciente, como tal o que o simbólico sanciona é a instância do imaginário como seu oposto que transige como numa borda, numa articulação.
      Deleuze-Guattari aprofundaram esse objetivo, ao colocar a libido como acoplamento corporal das pulsões que não seriam apenas psíquicas mas propriamente físicas, num contraditório retorno ao referencial de Freud. Ulteriormente à libido, haveria uma memória virtual que ao mesmo tempo mapeia as potencialidades ativas físicas atuadas (fluxos desejantes) e as torna possíveis por serem sancionadas no mapeamento. A linguagem socialmente mediada ou esquizofrênica resulta como um terceiro nível, do gozo ("voluptas") daquilo que é assim sancionado passando a significar algo como tal.
          Mas podemos notar que a crítica pós-estruturalista a Hegel já exibe uma falha nesse ponto, pois como em Derrida se observa com mais nitidez, ela depende de se manter que o simbólico freudo-lacaniano, ao enunciar-se ao mesmo tempo como teleologia e como formação de uma subjetividade que não pode ser senão a ocidental, apenas integra a longa história da metafísica desde Platão, a qual como Lacan diria, é a história da confusão do Significante (Saber) com o Poder (identitário), mas não como Lacan, ela não teria se processado como uma mudança conspícua a partir da ciência experimental - a descoberta da elipse, especialmente - por um lado, conexa à enunciação do Cogito cartesiano, por outro lado.
          Então a história  passa a ser contada pelos pós-estruturalistas (Derrida) como a do recalcamento da visibilidade do Significante - nesse caso, da escrita - e nela Hegel seria apenas um capítulo subsequente a Rousseau. Como já deve ter ficado claro, esse recalcamento é a mola de toda identificação (Poder), por onde o  (um) significado, por mais que esteja obviamente dependendo de operações variáveis do significante, só se apreende como absoluto, evidência em si e por si.
         Inversamente, como já assinalei, a meu ver Hegel não se pode entender sem que se demarque como transformação precisamente em relação ao limite rousseauísta da visibilidade do signo. O direito privado hegeliano e romântico implica que nesse nível privado não há identidade generalizável, e é a escrita, ora da cultura, ora do direito, que vai liberar respectivamente a variação ilimitada do privado e a destinação desejante do ilimitado ao limite intersubjetivo por onde cada sujeito reconhece - ao cabo do drama histórico senhor-escravo - que cada um é Sujeito por si, igualmente quanto a status.
        A partir desse limite se desdobra o nível público de vigência do Estado, cujo referencial não pode mais ser qualquer sujeito individualizado. Como já se observou, o próprio príncipe da monarquia constitucional dos tempos de Hegel é por ele pensado em termos do que seria um símbolo desse desdobramento de níveis, não como personificação do Poder, por onde a questão é que ele, seja como for que tenha feito a partilha, nunca deixou de colocar ao lado do príncipe, a constituição.
          Qualquer personificação do nível público implica, como fenômeno de Poder, subversão da constituição que para Hegel define o Estado contemporâneo. Somente quanto a isso pode-se notar que Hegel preserva a exigência iluminista da ausência de privilégios, mas nele nem se trata de uma teoria do pacto social, nem de uma epistemologia a-histórica. Quanto ao pacto ("contrato") social, Hegel o ironizava efetivamente, mostrando que contratos pertencem à esfera do direito porque são contraídos entre indívíduos privados, portanto não pertencem à esfera do Estado, não podem defini-lo.
         É aqui que incide a contribuição de OA já no século XX onde em vez de monarquia constitucional já se tratava de democracia. A partir dessa base do pensamento hegeliano, ele vai avançar a uma reconceituação do inconsciente, que obtem mudando o referencial da "sociedade". Em vez das instituições ocidentais como generalizações teleológicas de todas as instituições não-ocidentais - prática epistêmica obviamente etnocêntrica que ainda é a do Lacan de 1938 - OA se coloca a questão do inconsciente defrontada à realidade da pluralidade institucional reportada pela antropologia social que nesse ínterim havia surgido.
       A essa altura, as interpretações totalitaristas de Hegel já eram bastante conhecidas para que se possa supor que OA as ignorasse, mas Hegel é um dos autores mais controvertidos quanto à recepção e OA está expressando isso de forma aguda. Na interpretação totalitária, que me parece ter sido o criticado dos pós-estruturalistas, Hegel teria feito uma síntese desde o desejo subjetivo, de modo que o Estado seria a destinação desse desejo de reduzir-se cada um a uma parte da coletividade suposta uma única identidade ou meio de sentido. Claramente esta é uma interpretação que estou designando funcionalista numa referência geral de pós-positivista, portanto também já marcada pela informação antropológica de um modo que Hegel não podia ter sido.
          Em todo caso, a transformação social que Hegel conceituou apreendendo-a do presente histórico pode ser, como aqui é o caso, interpretada como uma articulação em que em nível privado, trata-se da conquista do conceito de alteridade e da atuação decorrente intersubjetivamente, enquanto em nível público trata-se da conquista da cidadania ("civilidade") a partir da transformação constitucional ("representativa" de toda a população heterogênea) do Estado.
       Mas se OA utiliza-se de Hegel de forma irredutível à dos totalitaristas, por sua vez ele polemizou também com o estruturalismo straussiano. Aqui há uma certa ambiguidade do seu pensamento. Para defender o matriarcado, aparentemente sustentou a narrativa já superada de uma trajetória originária desde o comunismo promíscuo primitivo, isto é, defendendo Bachofen e (Marx)-Engels, mas de fato o conceito de matriarcado que ele mesmo constroi depende de que na origem não esteja a ausência, mas a presença da lei, de modo que a própria lei possa ser pensada irredutivelmente ao complexo edipiano.
          OA construiu a sua problemática de um inconsciente não modelado pelo paradigma da família nuclear ocidental, justamente a partir de uma instituição já existente e para ele suficientemente descrita, a poliandria das sociedades igualitárias - não significava ausência de leis do casamento, portanto, como Marx/Engels haviam feito a partição utilizando-se de Morgan, desde uma promiscuidade total de relações de pais e filhos, até a prescrição do casamento de grupos e, pelo acontecimento da propriedade privada, a dominação das mulheres pelos homens para garantir o patrimônio familiar.
         Para OA o vínculo social da poliandria das sociedades igualitárias devia ser suprido a partir de uma história da adaptação tropical, posto que em vez de força bruta como supunham os positivistas, tratava-se do ócio devido à abundância local da oferta extrativista. Assim outro aspecto ambíguo é que em todo caso tratar-se-ia de uma narrativa linear. Mas de fato a construção conceitual de OA é descontínua, devendo ser agrupada de seus vários escritos marcados pela interlocução entretecida no momento.
         Creio que se poderia notar que não é pela grande síntese histórica neohegeliana que ele enunciou, do homem natural (tese), ao homem tecnizado (antítese) até a modernidade do homem natural tecnizado (síntese), que processualmente se demarca a pontuação hegeliana desses escritos. Mas pela forma como eles procuram se articular a partir de uma dialética tal que torne complementares os pares de opostos constitutivos dessa história que assim, em vez de linear é polar, com  dois trajetos paralelos até as Grandes Navegações. Ademais a utilização da tríade hegeliana para ilustrar  processos históricos na margem não é uma novidade de OA, mas já se havia feito nos Eua.
           Os pares de opostos que OA conceitua, a princípio são estruturantes de realidades irredutíveis, mas eles se tornam uma história a partir das Grandes Navegações que os entredestina. Além disso, enquanto pares de opostos eles conceituam estados do desejo como estruturante além deles mesmos tal que explica sua variação, mas inversamente a Deleuze-Guattari, um estruturante assim não tem um conceito separado e é construído pela complementaridade dialética dos opostos. A complementaridade não enuncia a destinação de um dos termos ao outro, no interior do par, mas a sua deriva alternativa.
         Esses pares conceituam a duplicidade a partir do primeiro par que a institui como do matriarcado (sociedades igualitárias) e patriarcado (sociedades não-igualitárias; trajetória ocidental desde o escravismo antigo). Assim cada termo de um par nomeia a resolução alternativa do que o par constitui, no  patriarcado e no matriarcado. Formas sacerdotal e órfica de religiosidade; sociedade com centralidade autoritária e sem centralidade autoritária quanto à instituição política; com tabu de virgindade (vigilância da sexualidade feminina) e sem tabu de virgindade quanto à regulação do comportamento; com esquema de propriedade e sem esquema de propriedade quanto à economia; escravistas ou antropófagas quanto às relações de rivalidade com outras sociedades.
         Essa inteligibilidade  não é estranha ao pensamento brasileiro, como já demonstrei quanto a Antonio Pedro de Figueiredo e seu método das "polaridades", na publicação recente sobre o Pós-moderno (ver também o Blog "pensamento brasileiro"). Ela de fato se produz da nossa interlocução do Romantismo, mas como algo bem original. Em Figueiredo, as polaridades mapeiam o campo epistemológico da modernidade.
        As polaridades ou em OA, os pares dialéticos, são resoluções em devir, em vez de serem formalismos a priori. Por exemplo, seja a complementaridade quanto a propriedade. A ausência de esquema de propriedade não significa apenas que a economia é comunal. OA pensa assim que se trata mais basicamente das economias de prestação de serviços e do dinheiro. Como de prestação de serviços, a Idade Média europeia - descrita ainda, antes da "história das mentalidades ", como feudal - seria uma ilustração de economia sem esquema de propriedade, ainda que sua forma estruturante seja patriarcal, não matriarcal.
         A trajetória histórica, antes da historicização das duas trajetórias paralelas (matriarcal/aborígines americanos; patriarcal/colonizadores europeus) por seu entrelaçamento,  pode-se afirmar existente a partir de um outro par de força quase tão teoricamente estruturante quanto essa oposição das trajetórias, a saber, aquele que se nomeia como ideologia e utopia. Aqui há uma complicação considerável, posto que a instauração dessa polaridade que se institui quanto à cultura,  se explica na verdade pelo fato das grandes navegações, uma vez que as "utopias" com gênero literário e exercício pensante se inaugura na Europa precisamente como projeção idealizante da margem recém-descoberta.
         A partir dessa instauração, OA pode aprofundar o que Afonso Arinos, numa índole diferente, havia iniciado como a tentativa de reescrever a história europeia desde as Navegações a partir da inserção a se verificar nela decisiva, dos acontecimentos na margem. Mas Afonso Arinos jamais rompeu com o desejo de fazer da margem um novo mundo católico europeizado, mesma intenção dos adeptos de G. Freyre, a qual, com a de OA, não mantem conexão. O conceito do presente histórico em termos de síntese, em OA implica a liberação ou matriarcalização do inconsciente ocidental na margem, pela adaptação local da técnica, que iria assim operar o retorno do ócio como fator estruturante da sociedade igualitária.
          Mas como conceito, "utopia" em OA implica o que foi projetado na Europa e impulsionado o gênero homônimo de escrita, a saber, o horizonte do desejo matriarcal atuando no seio do desejo patriarcal. Quanto a este, culturalmente falando seria então o foco produtor das "ideologias". Aqui vemos uma utilização bastante peculiar de Manhein. Assim, mesmo antes de haver o gênero utopia, aquilo que ele implica como o horizonte desse desejo sempre esteve numa atuação dialética no seio do patriarcado, e OA interpreta assim as heresias e a corrente de devoção à figura feminina de Nossa Senhora, em relação às ideologias católicas na era "feudal". O inverso, o horizonte do patriarcado subvertendo a liberação nas sociedades igualitárias, não ocorre antes das invasões e de outro modo que não essa violência, porque o fator estruturante do ócio não havia sido deslocado.
        Ora, a poliandria é o que define o matriarcado, e de forma  nenhuma o fato de haver alguma autoridade feminina - nesse caso, como assinalei, não existe autoridade centralizada, e o chefe é alguém que por ser respeitado por todos, é escolhido para servir de porta-voz das resoluções comuns, tomadas a partir das discurssões em que todos os considerados responsáveis vão tomar parte, como na Ágora da democracia grega. A instituição de chefia é extremamente móvel, posto que pode-se mudar de chefe se não se estiver satisfeito.
          Que "o índio é um homem livre", essa citação é de Orlando Villas Boas, de uma entrevista à Revista Visão de 10/02/1975, portanto não se trata de alguma ingenuidade de OA ou de insuficiência da pesquisa de campo - como se sabe, os irmãos Villas Boas foram incansáveis nesse ramo.
         Nessa entrevista, Orlando relata que "o índio em sua tribo tem um lugar estável e tranquilo. É totalmente livre, sem precisar dar satisfações de seus atos a quem quer que seja". A noção de "tribo", portanto, nada tem a ver com a generalização costumeira de um bando de pessoas que - como é costume compreensível de adolescentes ocidentais que estão tentando afirmar suas diferenças em relação aos pais - não distinguem sua individualidade senão por características e atos comuns.
          Pelo contrário, na tribo aborígine sul-americana,  conforme Orlando Villas Boas, e ulteriormente às suas diferenciações notáveis, " o homem é dono de todos os seus atos", sem necessidade do "aparato, um sistema repressivo para poder manter a ordem e a paz dentro da sociedade". Quanto a essas diferenciações, tratou-se de temperamento, como do mercantilismo dos Aueti, a premeditação dos Kamaiurá, o retraimento dos Trumai, a singeleza dos Waurá, a espontaneidade dos Kuikuru. Mas as sociedades se distinguem basicamente por sua história, que o volume "Xingu, os índios, seus mitos", como uma das poucas publicações nessa área, relata sucintamente reconstituída dos informantes das tribos, que as conhece a partir de uma rede de conservação oral.
        Como tal as histórias narram como o povo veio a se fixar onde se encontra, de onde e porque migrou, que vicissitudes encontraram no caminho como guerras ou devastações, e como decorrreu sua situação atual, sendo que além de um núcleo de povos reunidos pela partição territorial da "sociedade nacional' (governo brasileiro), no parque Xingu, a realidade da época contava ainda com povos belicosos e arredios, não integrados, que faziam guerras a este núcleo ou que disputavam entre si.
          OA conceituou o inconsciente aborígine, motivado pela realidade social de não-repressão impensável por si mesma pela epistemologia freudiana- como realidade autônoma, não meramente "anterior" evolutivamente à família ocidental -  a partir da nomenclatura freudiana de ego, id e superego. Mostrou assim que o superego, como estruturante do ego a partir da realidade básica e pulsional do id, não poderia ser desenvolvido a partir da introdução da figura do pai, posto que esta não é individualizável num regime poliândrico da forma totalizante que ela assume na família nuclear patriarcal.
        Lacan, a partir desse mesmo fato básico, mas raciocinando teleologicamente de modo que a família nuclear seria a essência de toda variação familiar antropologicamente conhecida, diagnosticou a sociedade aborígine, enquanto estágio ainda falho da realização essencial (ocidental) primeiro, não como caso de ausência de pai, mas como caso do pai fraco.
         E em seguida, Lacan definiu a sociedade matriarcal como cultura expressiva da mesma consequência desse caso qualquer que seja a ocorrência individual, a saber, produção de personalidades estereotipadas. Mantendo a premissa defasada da personalidade "tribal" - personalidade coletiva somente - esse estereótipo seria de fato a realidade a explicar. Por aí, Lacan comparou as produções culturais ocidentais em termos de ricas e diversificadas, com o que seriam as pobres realizações coletivas de estilo imutável por eras, dos "selvagens". O estereótipo é a impossibilidade da variação desde um sentido pre-fixado, como se sabe.
          Não tratou Lacan da ideologia - ou do discurso da dominação -  constante/estruturante da cultura no ocidente geopolítico. Nem do fato de que o modernismo e toda impulsão libertária nesse Ocidente contemporâneo estão ligados à interlocução da produção cultural e  sociedades da "margem".
         Inversamente, OA tratou a impossibilidade da individualização do pai de forma totalizante na primeira infância, como uma possibilidade alternativa, pelo que é a multiplicidade do grupo social que vai propiciar a "socialização" - como modulação das pulsões ou práticas pelo simbólico socialmente mediado.
          Essa multiplicidade não é redutível a um só indivíduo, não ha´"representação" no inconsciente, mas o que ocorre é que, para utilizar a fórmula do "simbólico", este se torna investimento do desejo a partir não de uma cisão tal que a forma mesma do uno cisório - pela irredutibilidade dos termos e pela unidade da referência - é o que estrutura doravante a consciência ou função linguageira do sujeito.
          E sim de uma co-presença a si da lei que não está contraposta ao indivíduo, mas é expressão dele mesmo enquanto interlocução social. Assim, em vez do estereótipo da lei a ser repetido/fixado no costume, o que decorreria seria uma expressividade sempre renovada do sujeito que cria a lei e o seu situamento em relação a ela, no ato mesmo de cumprí-la. Como não há uma diferenciação na produção entre a arte e o artefato, de fato todos são "artistas", pois seu modo de produzir o artefato é expressivo, não puramente funcional.
         Por outro lado, assim como vimos na  instituição da chefia na sociedade igualitária - até hoje inconceituável pelo parâmetro ocidental - isso autoriza supor válido por si o conceito hegeliano de "civilidade" a partir de um desejo cuja construção conceitual depende do trânsito da alteridade. A sociedade não se reduz a uma estruturação do desejo individual, mas existe como um nível público realizável em termos de multiplicidade pensável.  Em Hegel, como já asinalei, a estruturação desse conceito está plenamente coerente com o Romantismo enquanto historicismo (real em devir) e  hermenêutica não-heideggeriana da heterogeneidade (miscigenação).
         Aqui há, por outro lado, de fato uma impossibilidade de definir a pronominalização dessa interlocução social porque - ainda que não o tenha encontrado explicitado em OA - não existe de fato "uma" cultura não-ocidental ou do matriarcado, mas enquanto tal este é definido apenas como horizonte utópico desde a ausência da transformação da dominação (patriarcado). O que existe são as culturas (sociedades) do "matriarcado", e é só examinando a sua "grafia" (mitos, inscrições, costumes, etc.) que poderíamos em cada caso avaliar os estruturantes. Elas podem ser apenas generalizadas enquanto sociedades igualitárias, que colocam os mesmos problemas ao conceito ocidental.
          Mas vindo dessa transposição ao "inconsciente de alteridade" como conceituado em OA, vemos que a recente transformação importante na área da linguagem não foi o transporte da linguística formal para a problematização do inconsciente a partir, digamos, de um foco na "teoria" - em geral, "da literatura", mas ramificando-se para todo o campo da cultura que se tornou assim legível. Esse foi o mérito mas também a limitação do pós-estruturalismo. E sim a transposição de toda a linguística ao parâmetro da texto-linguística, que redefine a unidade menor da linguagem em termos de "texto" - não de palavra, nem de frase.
         Sendo assim, não é o significante que se mantem o operador categorial dessa linguística, de modo que uma complementaridade não seria realizável desde o inconsciente, mas apenas um regime de suplemento a ser - pela psicanálise - purgado das amarras da identificação. Mas sim a complementaridade de macro e micro estruturas. O pensamento-linguagem não opera desde a unidade, mas a micro-estrutura, que ocupa agora a posição outrora única do significante, conduz a necessidade de rever a teoria do inconsciente a partir dessa materialidade plural, como rede performática de alguma "coerência".
          O jogo não é fundamentalmente "regrado", mas performatizado, o que se realiza não é a repetição de estruturas, mas a variação de enredos desde a preensão dessa ausência que é a macroestrutura ou endereçamento - o genotexto kristeviano, mas com a particularidade dele só poder ser pensado na imanência de algum gênero de linguagem como prática, portanto já informada como leitura de gênero, em que se produz.
         O importante, entre OA e a textolinguística, é a trajetória do ex-cêntrico como conceito a coalescer desde o deslocamento do Sujeito/individualidade do Significante,  não pela redução "coletiva" do mesmo modo identitária, o que se tornou tematicamente explícito com o pós-modernismo. Na verdade, não dispomos ainda de uma textolinguística aplicada à teoria do inconsciente, mas me parece que uma deriva nesse sentido encontraria ventos favoráveis nesse rumo. A meu ver, em OA o ex-cêntrico já é pensável a partir do deslocamento dialético da lógica do suplemento, e desde aqui desenvolvo tópicos que possam ancorar essa suposição, junto ao exame literário de OA em paralelo ao pós-modernismo.


      19 / 11 ; 20/11

          Patrick Bade, num folheto distribuído pela Royal Academy of Arts junto ao CD "Musical impressions from Manet to Gauguin" (1995), observa algo ironicamente - devido a esse título - que a carreira de Debussy não deveria ser associada aos Impressionistas, como se faz tão frequentemente: "By and large Debussy's artistic allegiances were not with the Impressionists but the opposing 'Symbolist' group".
             Lembrando aqui que a carreira de Debyssy atravessa a fronteira entre os séculos XIX e XX, podemos relacioar aos inícios deste as referências de Bade, sendo que é nessa época que se situam os dois romances que estaremos examinando, "Os Condenados", de Oswald de Andrade; e "Ragtime", de Doctorow.
            Estabelece Bade um verdadeiro antagonismo entre as duas escolas, primeiro porque o Impressionismo foi cronologicamente anterior, também não só sucedido, mas suplantado quanto à importância histórica, pelo simbolismo. Assim, tanto por uma questão de geração, estando sua produção mais associada, no séc. XIX, aos anos oitenta em diante do que aos setenta que estritamente define a voga impressionista, quanto pela resolução estilística, Debussy estaria mal caracterizado associando-o a tal voga.
          É a conceituação estilística de Bade que nos importa aqui como algo pertinente ao cenário dos dois romances, os inícios do século XX.
             Conforme Bade, o Impressionismo pode ser visado como uma radicalização do Realismo, mas não assim o Simbolismo. Os primeiros eram agora criticados por terem se limitado a explorar o "mundo físico" abandonando a "verdadeira tarefa artística" que consistiria em "expressar uma realidade superior à do mundo físico percebido pelos sentidos". O que interessava aos simbolistas era "imaginação, fantasia, mistério e sonhos; as coisas mesmas obliteradas pelos esboços impressionistas da vida urbana e dos banais subúrbios parisienses".
          Já os quadros de Monet mais habitualmente aproximáveis como influências da música de Debussy, são atribuídos por Bade ao período pós-impresionista do pintor, e algo aproximado ao simbolismo, como o de produção da Catedral de Ruão e do Palácio de Westminster. Mas a aproximação verdadeiramente válida, ao ver de Bade, da música de Debussy com as artes plásticas seria com os pintores caracterizados tipicamente como simbolistas. Gustave Moreau; Odilon Redon, com quem Debussy se relacionou pessoalmente; e  Puvis de Chavannes cujos murais soi-disant "frescos" inspiram Peleas e Melissande, a obra prima de Debussy.
          Assim definido o estilo dominante da transição ao século XX, o qual não podemos deixar de tangenciar quando se trata de entender algo dessa rubrica complexa até hoje, a eclosão do "modernismo", algumas das características registradas por Bade se revelam oportunas ao encaminhamento literário.
             A atração pela mistura de piedade e sexualidade seria uma influência da cena francesa dessa transição secular, ms de fato melhor expressa na obra prima de Wagner, o Parsifal. Como se poderia observar também pela  autobiografia de Isadora Duncan, a corrente wagneriana é importante na formação dos artistas de inícios de século. Esta é, pois, uma das indicações no sentido daquilo que deve ter ficado claro pela definição do estilo segundo Bade, ou seja, sua óbvia conexão ao Romantismo.
           E o que se segue do seu texto bem o expressa, tratando-se da grande expansão que  conhece a obra de Poe, desde as suas traduções francesas por Baudelaire e Mallarmé. São agora músicos e artistas plásticos que se interessan por Poe, e Bade registra assim exemplificáveis Debussy  e Redon, Manet, Gauguin, André Caplet e Florent Schmidt.
           A atração pela mistura de piedade religiosa e sexualidade é claramente expressa em Os Condenados de OA, onde a parte inicial (Alma; 1922)  é reservada à protagonista homônima - uma jovem de família que se prostitui por ser seduzida, para esse fim, por um gigolô seu parente. A ressonância religiosa relacionada a todo esse núcleo está expresso pelo próprio nome da personagem. A cena de nascimento do filho da prostituta - que apanha do gigolô que a explora,  mas com quem ela não consegue romper por absoluta devoção amorosa -  reproduz textualmente a natividade de Cristo.
            Não me parece registrável em Doctorow, essa característica, mas aqui torna-se importante tangenciar a diferença entre a visão europeizada da arte nessa época, e a visão americanizada expressa em Doctorow, lembrando que se a cena dos dois romances transcorre igualmente em princípios do século, Oswald está escrevendo no presente da época, enquanto Doctorow escreve na década de setenta desse mesmo século. Sua inserção - entre a predominância dos dois estilos assim designados "Pop" e  "Pós-moderno" -  inere a essa questão da "singularidade norte-americana" como alguns designaram a produção recente, e do que trataremos mais à frente.
            A própria convergência de formas de arte - como pintura, poesia e música - segundo Bade expressa uma tendência marcante daquele momento. A qual, poderíamos acrescentar, se exemplifica ostensivamente nos dois citados romances.
           Em OA, o segundo trecho da composição ("A estrela de absinto"; 1927) introduz o pintor/escultor futurista inspirado em Brecheret, conforme a crítica local (Mário Brito). Ele é o outro parente de Alma, voltando a São Paulo de um curso na Europa. O abandono pelo gigolô leva a jovem por ele feita prostituta a um percurso errante, mas que se equilibra mal e mal pela oferta de estabilização de um amante rico, episódio que não dura muito pelo fato dela ser instável emocionalmente, não livrando-se nunca da atração pelo gigolô.
            O envolvimento de Alma com esse outro parente deveria conduzir à sua redenção - os dois homens simetricamente inversos um do outro, como o mal e o bem. Mas o artista plástico encena a linha de continuidade da família, de modo que o mal é um elemento transitório, não entra nessa linha demarcada pelo avô, a neta e o neto pintor que se sucedem cronologicamente uns aos outros.
         Alma morre de doença, após a perda do filho também de doença, e o escultor salva-se por pouco de um atentado a tiros durante o carnaval paulista onde encena sua paixão pela moça falecida. Pode-se interpretar o destino de Alma como renúncia suicidária, pois nunca deixou de amar sem êxito o gigolô, seu envolvimento com o escultor não tendo mudado seus sentimentos. Na realidade, ela figura miss Ciclone.
           Ora, o terceiro trecho ("A escada"; 1934) vai ser protagonizado por esse escultor, mas que agora na verdade apresenta aspectos autobiográficos, encenando experiências do próprio escritor Oswald de Andrade.
           Para Bade, a convergência entre as artes foi tão notável na transição ao século XX na Europa, por estar conceituada como valor sinestésico do objeto estético. A sinestesia viria como valor explorado desde os tempos de Baudelaire - e aqui nos recordamos de sua mística teoria da correspondência universal, em que os valores atribuíveis formam analogias, sendo associáveis. Assim sons, perfumes, palavras, caracteres de personalidade e signos (números, símbolos, etc.).
          Em Doctorow, se há um protagonista, por furtar-se à caracterização geral do que seria a composição dos personagens, equivocamente centrados numa concepção totalizante de si mesmos, é o artista plástico Tateh. O romance transcorre entre duas notícias históricas das artes plásticas: as telas de Wislow Homer e a eclosão da vanguarda.
         Curiosamente, Bade lista entre os motivos de interesse de Debussy a ilustração de livros infantis, o que lhe inspirou a expressão "les fées sont d'exquisses danseuses". Tateh se salva - e à filha - da miséria, pela comercialização dos seus livros ilustrados que interessam por poderem ser vendidos em bazares, como objetos de decoração ou entretenimento de crianças. Tateh se casa afinal com a mãe do personagem-narrador, e a cena que eles vislumbram dos seus filhos reunidos inspira a ideia de tudo o que fora narrado como um filme, ou uma série de filmes. Ele havia se convertido, nesse fechamento da história, em produtor de seriados belicistas, citados "Slade do serviço secreto" e "Sombras do submarino".
          Entre OA e Doctorow, há portanto uma diferença do intertexto, digamos, técnico. Em OA é a literatura médica, que converge o binômio devoção-sexualidade na questão social - do mesmo modo bastante focalizada em Doctorow - da insalubridade urbana dos inícios do século. Em Doctorow, não é o intertexto da outra-arte sem que ela se desdobre de arte em espetáculo, perfazendo os trechos entremeados dedicados ao circense Houdini. 
           Nesse ponto, trata-se de algo exclusivamente (Norte)-"americano", e esse locus em Doctorow é explícito, enquanto em OA, o situamento de Os Condenados sendo anterior ao seu rompimento com o partido comunista, o que se encena, inversamente, é o seu engajamento numa deriva europeia da cultura, deslocando sua adesão "modernista" (nacionalista) dos inícios marcados pela influência de Mario de Andrade.
          "A escada", protagonizado unicamente pelo pintor, efetivamente conduz à sua conversão ao comunismo, a partir da influência da personagem feminina que simboliza Pagu - lembrando ainda que os três trechos foram compostos em épocas subsequentes desde o inicial, da fase modernista-nacionalista, lido sob vaias na Semana de 22.
           Aqui, portanto, se imbricam as questões da deriva propriamente modernista, ainda que na presença de componentes simbolistas, assim como a divergência das derivas de OA e Doctorow a partir de um mesmo foco do conflito social de época, encenado a partir da subjetividade dos personagens.

                                        
 20/ 11 ; 01/12

       Mario Brito sublinhou em resenha de 1970 ("O Aluno de Romance Oswald de Andrade"), que Os Condenados já estava a essa altura bem sedimentado como referência da crítica local. Contudo, essa resenha da recepção crítica da obra contem algumas lacunas importantes. De fato, a mais notável é sobre o seu estilo, tendo sido a princípio recebida como realista ou "verista", mas de uma qualidade "tão comburente" que poderia apenas "agradar a limitado número de apreciadores", conforme Leopoldo de Freitas e Candido Motta filho. Enquanto Nestor Vitor parece tê-la na conta de simbolista. Como já ressaltei, um trecho da parte inicial integrou o elenco das apresentações da Semana que entre nós assinala o marco histórico do Modernismo.
         Entre realismo e simbolismo, na verdade estava em jogo algo mais, a questão moral. A coloração radical com que se tingia as  páginas de Alma,  levou o jornalista Paulo de Freitas a armar uma campanha de difamação da obra taxando-a de imoral: se isso fora arte, estaria ela nos lupanares e na pena dos "cabotinos detratores da moralidade".
          Se para tal jornalista, famoso na época da Semana, OA teria sido "meticuloso na tecnologia do lupanar", por outro lado houve os que  leram Os Condenados como uma peça de moralismo, à exemplo de  Carlos Drummon de Andrade. Nestor Vitor a exime da pecha de torpeza que se lhe haviam consagrado, anotando: "O senhor não é um amoralista; sente, pelo contrário, indominável revolta contra o meio social que produz 'Os condenados'".
             Sergio Milliet, na década de quarenta, fixou essa linha de leitura. A obra de Oswald seria "análise literária de processos sociais", produto de "trabalho de campo demorado e paciente", enquanto a questão do estilo parece tender a uma solução pelo simbolismo, por um lado, com Prudente de Morais Neto associando a prosa de Os Condenados a d'Annunzio, e por outro lado a uma associação que se tornou canônica, dessa prosa com a técnica cinematográfica assim inaugurada na ficção brasileira. Prudente mesmo considera-a "qualquer coisa como um romance russo adaptado pelo cinema italiano".
           Roger Bastide completa as vertentes mais conspícuas de leitura que vem se fixando ao longo das décadas, ao propor que aproximando-se da concepção do Amor constante de Madame Bovary, Oswald assinala nas letras brasileiras o seu estatuto pós-machadiano.
             O próprio Oswald corrobora algumas dessas leituras, especialmente registrando que lhe agradou o voto de Bastide. Ao testemunhar que seu modernismo havia sido uma revolução contra si mesmo, proém, Oswald é ambíguo.
            O modernismo serviria para evitar que escrevesse bonito demais, ou que ficasse parecido com  d'Annunzio, mas como essa revolução estilística é progressiva, pode ser que Alma seja ainda um reflexo do que o modernismo deveria destruir como "todo o velho material linguístico que utilizava". Ou se disse da obra toda tratar-se de prosa crepuscular - resquício da art nouveu (cf. Haroldo de Campos). Segio Brito registra que Oswald revelou ter buscado "nos seus primeiros livros, a escrita artística, laboriosa dos irmãos Goncourt" - que conforme Carpeaux podem ser caracterizados como "os primeiros naturalistas".
            Mas um outro registro, o de Israel Novaes no Correio Paulistano referenciando uma entrevista com Oswald, este revelava, em suas palavras: "devo minha carreira literária a Eça de Queiroz", cujo A relíquia lhe havia sido recomentado por um colega de escola, ambos alunos do São Bento, à época de sua adolecência. Esta entrevista, em que Oswald desenvolve o tema de sua influência originária, está reportada em "Os dentes do dragão".
           Na verdade, voltando ao tema, não ressalta qual dos dois pode protagonizar o pivô do escândalo provocado com Os condenados, especialmente Alma. Aparentemente são as cenas do lupanar - mas há também as vívidas descrições dos espancamentos sofridos pela seduzida do gigolô, da parte dele. No entanto, com o tempo o que ressalta  problematizada é  a prosa dessa parte inicial. Antonio Candido chega a dizer que se tratou de um "delírio imagístico, quase grotesco", de modo que as partes subsequentes, notavelmente a Escada - que por um tempo foi intitulada também "A escada vermelha" - "sobe um pouco de nível".
          Compreende-se que a este crítico o compromisso socialista de Jorge d'Alvelos - que afinal se vê sendo conduzido para a clandestinidade, fugindo da polícia - deve ter soado salutar. Mas como teórico de literatura, elogia, em detrimento da parte inicial, como verdadeiramente só o episódio da Ilha. A meu ver nesta parte Oswald perde a qualidade estilística romanesca - como vinha decaindo desde que o escultor se torna central na trama.
          O artista não chega a ser formado enquanto personagem, com a consistência de Alma. A leitura crítica que credita algum valor ao romance de Alma por ele poder ser reduzido a uma problemática social não alcança precisamente esse fator de que a problemática só chega ao nível do lancinante por ser como que vivida por uma personalidade articulada, bem subjetivada. O excêntrico seria assim a continuidade da literatura desde o Romantismo, porque por outro lado o Sujeito desde o Realismo fora reduzido ao processo histórico. A cena da ilha é a estampa desse Realismo clichê, que se contenta muito com lhe ser apresentadas cenas de como as coisas deveriam ser quando se trata de seres humanos.
           Ora, nesse rumo, Oswald abandona a linha auto-crítica estilístico-literária para se fazer auto-crítico ideológico. O que ele repudia em nome do partido, é justamente ter feito literatura nessa acepção - a construção do excêntrico, que na sociedade moderno-ocidental não é a livre variação do sentimento do mundo sem estar constituído como marginalizado pela subjetividade clichê (capitalística ou proletária).
            A crítica da sociedade do espetáculo, de Debord, por exemplo, não é um apelo à liberdade da consciência. É o apelo à submissão das massas à elite do partido. A identidade é a ipseidade - daquele que deve responder pelas premissas éticas traçadas pela elite. Assim, Debord não reclama só que se usem pseudônimos na imprensa. Mas fica indignado porque por trás de alguns dos pseudônimos, esteja não alguém cujo nome de batismo é outro, mas várias pessoas que colaboram num mesmo texto.
          A independência da forma, o fato de ser materialmente produzida, é o que demarca a impossibilidade para uma sociedade "de espetáculo" - midiatizada - funcionar sob as coordenadas do marxismo que se atribuiu a si mesmo o papel de materialismo, como por outro lado uma pesquisa que havia se tornado aparato de polícia não porque era perseguida no ocidente, mas porque enquanto partido e na URSS, proibia qualquer linha destoante. Não seria possível descobrir que um modo de produção "feudal" provavelmente nunca existiu - por que Marx, com seus deficientes aparelhos informativos de época, havia definido o feudalismo como ante-capitalismo.
         Quanto à materialidade da forma, é suficiente notar como ela constroi por partes descontínuas, o que se designa hoje em dia a "imagem" de uma personalidade pública - especialmente presidentes e políticos importantes. Som e imagem não são um mesmo universo, nessa montagem.
           Ora, é bastante interessante notar que o romance de Doctorow encena uma personagem homóloga de Alma - pelo que ao que parece, se trata de um tipo de inícios de século. Mas aqui a pioneira pin up, que igualmente se encena sendo espancada por um dos amantes, justamente aquele de que ela não se aparta voluntariamente, não tem o destino de Alma. Após circular como um fiat da paixão - o homólogo do honesto apaixonado João do Carmo, nesse caso é o Irmão mais moço de mamãe, com as mesmas variações em torno do sofrimento amoroso - entre vários personagens, Evelyn Nesbitt apenas envelhece anonimamente.
        Inversamente à prostituída, a pin up é o tipo dessa beleza emocionalmente dependente, mas numa sociedade de espetáculo onde ela vai ser canalizada para o interesse dos jornalistas e da alta sociedade que não se identifica como o meio que Oswald retratou, da moralidade por um lado burguesa, por outro lado referencial como os nomes próprios dos importantes da cidade, sendo pelo contrário, composta apenas dos protagonistas do grande capital  internacionalizado.


        Poderia parecer paradoxal o fato de que em contraste com Poe, que como assinalei, pensava em uma literatura universal - objeto de um ponto de vista "criticista" superior ao modo de uma ciência da literatura - o Pop e o Pós ostentem uma temática do "americano" e do que é americano, como em Andy Warhol e Doctorow.
          A expressão "isso é americano" está referenciada como constante em Warhol que apontava assim, ao que parece, o que seria familiar a uma linguagem social midiatizada - dos hamburgueres às estrelas de cinema e à coca-cola. Quanto a esta, parece que constitui uma chave para entender o enigmático uso da indicação "isso é americano". Conforme uma publicação recente (Coleção gênios da arte, texto de Margarita Rodriguez), Warhol citava o nome de personalidades famosas e dizia que todas elas bebiam coca-cola, ao que acrescentava, "e, pense bem, você também pode beber coca-cola".
            Além disso, havia também a indicação do "isso é arte". Warhol usou essa expressão para demarcar o que deveria ter vindo a ser a arte presente: nada mais do que o objeto para o qual um artista apontasse, afirmando ser arte.
             A indignação dos críticos, notavelmente os de esquerda ligados ao marxismo, contra o pop e o pós não precisa ser resenhada - a lista seria grande mas demasiado repetitiva. O argumento é único. Trata-se de cinismo, porquanto o lugar da arte está esvaziado pela coisa qualquer, pela frivolidade, pelo objeto de consumação. No entanto, quando o Macarthismo já não tinha ressonâncias nos Eua como qualquer empecilho à expressão de ideias de esquerda, várias obras de Warhol estavam sendo submetidas à Censura do Estado americano.
            Ele foi o pioneiro a usar como seu modelo retratos de foras da lei procurados pela polícia. Essas telas tiveram que ser retiradas, por ordens policiais. Warhol respondeu que melhor assim: não seria por ele que tais pessoas seriam mais facilmente denunciadas. Sua obra contem vários elementos de discussão da pena de morte vigente nos Eua. O problema aí é que os condenados geralmente são pessoas do povo, ou politicamente indesejáveis.
          Chelsea girls, o filme, também foi censurado. O espantoso nisso, é que Warhol usava como referência, nada mais que o noticiado pela grande imprensa. Porque a mesma coisa noticiada num jornal ou tratada esteticamente é julgada ora como utilidade pública publicar, ora como pernicioso publicar?
          Nesse ponto, a obra de Warhol e de Doctorow convergem, sem dúvida. O período referenciado em Ragtime, se muito evidencia a questão do imigrante, nada tem da idílica "colcha de retalhos". A expressão consta no romance, enquanto os imigrantes reais são mostrados em sua sede de mera igualação ao elemento americano "normal". Os irlandeses já fixados há duas gerações são os agentes mais conspícuos das perseguições e preconceitos movidos contra os imigrantes recém-chegados e especialmente contra judeus.
         Como noticia Claudio Vicentino (História geral), esse período é de intensa radicalização nacionalista nos Eua. Cita Sellers e Macmillen: "Em janeiro de 1920, o politicamente ambicioso procurador-geral Al MItchell Palmer ordenou uma série de batidas em organizações radicais alegadamente estrangeiras. Utilizando dossiês reservados compilados por J. Edgar Hoover, diretor do novo Bureau de Investigações, os agentes de Palmer prenderam sumariamente mais de 4 mil pessoa em 33 cidades. Cerca de 250 estrangeiros, incluindo Emma Goldman, foram deportados para a URSS a bordo da 'Arca soviética' ".
             Sobretudo assinala-se nesse trecho citado que uma onda de hostilidade pública havia se erguido contra tudo o que era estrangeiro, a partir da campanha de Palmer sustentando que havia um plano revolucionário em marcha. "Em 1921, dois anarquistas filosóficos, os infelizes Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti foram presos por roubo e assassinato com base em provas que pareciam ter respaldo na hostilidade pública a estrangeiros radicais." A execução de Sacco e Vanzetti, em 1927, foi decretada às expensas dos vários pedidos de libertação de ambos, a partir da reação a tal onda - foram "perdoados" im memorian na década de setenta.
             A essa altura, já é bastante conhecida a repressão desencadeada nos Eua contra a esquerda ativista, principalmente contra a juventude participativa que repudiava a ofensiva ao Vietnã e protestava contra o racismo. O Brasil era palco do intervencionismo hediondo - com repressão de uma violência inaudita, pior talvez que a dos campos de concentração nazistas, tendo por objeto não de fato esquerdistas comunistas, mas intelectuais representativos da nacionalidade. A violência ressoa, pois, entre as duas épocas, expressando o progressivo desgaste de qualquer visão única - de classe -  a propósito da significação sociológica do conflito social.
             Doctorow encena uma greve de operários em Massachussets,  a partir da situação dos "deprimentes cortiços de madeira" que "estendiam-se em filas infindáveis", e onde se encontravam miserabilizados "todos os povos europeus - italianos, poloneses, belgas, judeus, russos", mas "não havia entendimento entre os diferentes grupos". a participação de crianças no episódio é dramática, mas antes que pudesse reverter numa onda de simpatias pelos operários, fora cortada pelo patronato.
            O romance de OA se fecha, num sentido inverso, com a clandestinidade sendo referenciada como o lugar homogeneizado de todas as proveniências. "Tudo gente que nem o senhor!" - lhe diz o "encarvoado Saci", motorista que conduzia o fugitivo escultor: "Tem de toda raça, Alemão, Lituano, Preto, Argentino, Índio". O fugitivo repete a pergunta: "Onde"?, ao que lhe responde o chofeur, concluindo o texto: "No mundo do sofrimento" - definição rigorosamente adorniana da arte, descontando-se o pecado burguês do estilo.  
            Os dois personagens de Doctorow que encenam a violência disseminada pela sociedade americana - paralelamente à discussão que o texto desenvolve a propósito da América e do que ela devia ser - são Coalhouse e o "Irmão mais moço de mamãe", sendo o referencial do parentesco o persongem-narrador. Mas aqui o que chama a atenção é o fato desses personagens não serem, à exceção do texto lírico da paixão desse Irmão mais moço pela pin up, propriamente apresentados, mas construídos.
           A sobreposição do que eles são para si e da construção excêntrica do seu si é notável como a de dois planos discursivos. Eles expressam o que são para si, em sua fala de si; mas são construídos como excêntricos fora de si, a partir da situação social de marginalização em que se constituem.
             A princípio, sobre Coalhouse "papai" se pergunta, e à família - se ele sabe que é um negro. Antes de se converter num terrorista devido à humilhação sofrida por ação de um conjunto de anônimos mancomunados com o posto da autoridade local, Coalhouse tenta ainda a via da legitimidade jurídica. Seria preciso um advogado - redargue "papai". Então Coalhouse pergunta: "Existem advogados negros por aqui?".
              Nesse ponto, Coalhouse se torna negro - em função do que é descrito do seu comportamento, mas nunca se esclarece suficientemente, se igualmente em função do que ele pensa de si. A menção sobre isso retorna somente ao final da narrativa, quando ele se defronta com o outro da negritude, o líder negro e religioso, Booker Washington, que por estar interessado na integração, vê nesse amotinado um "inimigo" a mesmo título que, segundo o que diz, "cada negro na prisão, cada homem de cor vadio, desonesto, jogador e fornicador" de modo que "todo incidente onde houve uma falha de caráter num negro custou-me uma parcela de vida".
            O objeto "carro", pivô da revolta de Coalhouse, estrutura a sobreposição dos níveis atuando como elemento único de transição entre esferas sociais que aparentemente comunicantes, como se pensa da "sociedade americana", na verdade estão profundamente cindidas. Não é esse objeto simbólico, cujo enunciado imbrica esferas, que realmente assegura a comunicação entre elas, mas sim o espetáculo - como a arte de Tateh.
            O romance de Oswald carece precisamente, ora de um elemento simbólico tal que o conflito social escape manifestamente aos limites da leitura de classes para penetrar  o imaginário mesmo dos personagens; ora de uma mobilidade do espetáculo, por onde o imaginário é transmutado numa outra cena da produção. Em vez do que a cena se estrutura na instituição - o lupanar, o hospital, as casas familiares, o ambiente indefinido da cidade frequentada pelos homens que conforme Mario Brito são simbólicos dos amigos de Oswald. A transposição de Brecheret no próprio Oswald é então o que insere alguma transição entre as esferas delimitadas, mas ela não pode ser senão no plano identitário - já não excêntrico mas instituicionalizado pelo partido - dos personagens.
             Em Doctorow, o carro aparece primeiro na visão do personagem-narrador garoto, dirigido por Houdini - as duas esferas imiscíveis da família e do estrelato se imbricam enquanto o garoto vê Houdini acidentar-se sem consequências fatais.As duas séries não ramificam.
           O percurso terrorista de Coalhouse gira em torno da exigência da restituição do carro que lhe conspurcaram. Quando afinal se atende sua requisição, Coalhouse já está condenado, sacrificando-se pelo seu grupelho, mas do carro toma posse o Irmão mais novo que havia participado desse grupelho. Com o carro, atravessa a fronteira indo integrar as fileiras dos revoltosos mexicanos - Zapata e Villa.
            O Irmão mais moço perfaz a trajetória inversa de Tateh, como os dois personagens que efetivamente atravessam esferas sociais,  e já como uma das cenas iniciais o americano (pai do personagem-narrador) parte aventureiramente numa embarcação enquanto um navio de imigrantes aporta o cais. Mas é ambíguo se o Irmão mais moço realmente atravessa séries - pois ele é um elemento infixado, indeterminado, desde esse início.
           Creio que é como problemática mais atual do "texto" - como desenvolvida por exemplo em Henry Louis Gates a propósito da negritude não integracionista - que a sobreposição de níveis se estrutura em Doctorow como procedimento de construção dos personagens. Mas um conflito histórico-estilístico se instala - se o discurso que está sendo construído não é o dessa negritude de agora, que já tem uma via alternativa "integracionalista" como acima referenciamos. O que ela poderia ser, se por um lado, constituída na historicidade imanente do integracionismo, por outro lado excêntrica, impossibilitada de personifica-lo? A seguir, concentro o exame nessa trajetória de Coalhouse.


        01 / 12 ; 07/12/2012

       Em Ragtime,  Coalhouse começa culturalmente branco mas se torna negro. Não obstante, parece que a classificação literária do personagem em plano e redondo se vê problematizada aqui, o que nos permite notar que enquanto tal a classificação é imprescindível ser conhecida para apreender a originalidade estilística introduzida pelo texto.
             Conforme essa oposição, o personagem plano é aquele que não muda a estrutura de sua personalidade ao longo da estória, enquanto o personagem redondo é aquele que muda, exibe uma transformação. Ora, não se pode dizer que Coalhouse não sofre uma transformação, mas de fato sua personalidãde e ethos não mudam. 
           Creio que é como se pudéssemos afirmar que o texto trata a trajetória de sua transformação de honesto pianista e homem modelo de virtude, de quem se chega a duvidar sequer saber que é negro, num terrorista clássico agindo ostensivamente contra o racismo, ao modo de uma indução constante à impressão de que é o que qualquer um de nós faria, dadas as circunstâncias.
           A conservação integral da estrutura de sua enigmática personalidade - por essa característica de não ser a princípio diferenciada, apesar de diferençada, para usar aqui a oposição de Deleuze entre a aplicação de uma regra de diferença e essa regra mesma diferenciante - é expressa por ele mesmo a Booker Washington na situação final.
          É interessante notar que a oposição deleuziana conceituada em "Diferença e Repetição", se demarca como irredutível à apreensão do diferençar à homogeneização de uma identidade representada para si, e do diferenciar como a extração de traços com ela convertentes.
             Trata-se de um algoritmo, como uma fração onde a barra coloca abaixo a diferenciação e acima a diferençação. O algoritmo é então uma capacidade muito mais interna à economia psíquica, tratando-se de uma possibilidade de articular ou segmentar em partes o que é em si é uma intensidade "transcendental" como o fluxo sonoro é transcendental à sua diferençação em sons musicais e palavras, por exemplo. Nós não representaríamos o que se reduz a uma operação de atribuir, se a atribuição não fosse antes construída como possibilidade de nós mesmos a partir da qual nós é que nos representamos atribuindo e a atribuição não é nunca somente "nua" - pura forma "a" é "b". Isso seria com que também a fenomenologia e hermenêutica concordariam, mas elas param numa concepção do transcendental como ego ele mesmo puramente formal ou a priori da "consciência".
              Mas a consciência não explica, ela é o que tem que ser explicada. O algoritmo diferençante é uma função do inconsciente, enquanto este produz faculdades ativas, das quais a originalidade pós-estruturalista em geral e deleuziana em particular é afirmar que não são universais a priori conforme constantes de integração sócio-biológica. De fato, para deduzi-lo como universal, é preciso uma série de requisitos de construção científica dessa integração que dependem de informação sociológica e antropológica cada vez mais defasada. Não obstante, já a partir de Ragtime vemos que a constante algorítimica, procedimento comum dos estruturalismos ao seu pós, é o que começa a ser visado na sua limitação igualmente formal.
          Não se trata de uma objeção "transcendental", pelo contrário, se trata de uma extrapolação dos limites em que até o pós-estruturalismo e inclusive, podia-se manter o conteúdo e assim aquilo de que se trata é uma problematização mais geral de todo a priori como um modo de condução das problemáticas estritamente ocidental e não adequado à pluralidade constitutiva dos objetos, a qual por tal paradigma o mais geral, resta impensável tanto mais que esteja sendo expressa a partir da posição mesma de algo como um problema.  
               Na verdade, retornando a Ragtime, podemos afirmar que é nessa fala a Booker Washington que Coalhouse se define como negro.  A pergunta que precipita sua trajetória naquela de um terrorista - se é possível contar com um advogado negro na defesa dos seus injustiçados direitos e óbvios prejuízos - permanece na orla ambígua de sua auto-imagem culturalmente branca.
          Ele pode estar apenas raciocinando conforme a lógica contra a qual está se colocando, a do branco autoritário cuja posição legal prescrevia a ordenação da punição dos culpados e indenização dos valores, mas o que ocorreu foi que a autoridade - Will Conklin -  se solidarizou com a atitude dos vândalos racistas, comportou-se como eles expulsando e humilhando o cidadão negro lesado por um bando de arruaceiros, sem prestar-lhe qualquer assistência da lei:  "Se não tirar o carro e der o fora daqui, disse em voz alta, eu o multarei por dirigir fora da rua, embriagado e criar tumulto".
           Coalhouse não bebia álcool, e motivado pela exemplaridade do próprio comportamento respondeu altivamente à autoridade, de modo que seus protestos  ocasionaram apenas a sua vexamosa prisão, de que livrou  apenas a intervenção da família branca do personagem-narrador.
          Aqui, do mesmo modo que o que devemos esperar de um texto literário para notar a sua novidade formal, creio que Ragtime exige que se conheça algo do tratamento desse tema do "outsider" - conforme a terminologia de Norbert Elias para o "marginalizado" - na sociologia.
           Constataríamos assim que o típico nessa situação, segundo os estudos, não é tanto a solidariedade da autoridade com o vandalismo pelo fato de um único dado mover as duas atitudes, a repulsa racista - de fato, o texto registra que diante  da insistência de Coalhouse mesmo deparando-se com o favoritismo explícito da autoridade  "o policial começara a essa altura a avaliar a maneira de se expressar e vestir do negro, além do fenômeno constituído pelo fato de possuir um automóvel. E zangou-se."
            Esse dado da repulsa não estava isento de fato nem mesmo da família branca do narrador-personagem, como já salientei, mas ali ele não ultrapassava a estranheza e a repulsa se existiu, fora controlada pela civilidade e pelo impulso que representava o bebê de Sara, a noiva de Coalhouse, na verdade mãe do filho que já haviam tido. O importante aqui é notar que a repulsa se acentua, ao invés de diminuir, perante a negação à percepção dos traços repulsivos a que o discurso da característica discriminada se associa.
          Como Robert Merton havia notado, a "profecia auto-confirmadora" é o procedimento pela qual os grupos "estabelecidos" - conforme a terminologia de Elias - criam e perpetuam mecanismos sociais que assegurem a confirmação na prática, da associação do traço obviamente repulsivo com a presença do traço característico discriminado. Associar a negritude com o banditismo implica vedar o trabalho honesto a candidatos negros, o que os empurra por simples fator de sobrevivência, à falicidade do crime, e assim a "profecia" de que a cor implica o temperamento indomável e selvagem, cruel e incoativo à lei, se pensa confirmada.
          Contudo, as pesquisas sociológicas empíricas não permitiram que a ilação fosse de fato confirmada. Os mecanismos sociais assim criados tem sido postos a descoberto com sempre maior frequência. O pior para o partido conservantista-apartheidista foi que as pesquisas mostraram que o banditismo ele mesmo, definido como crime (infração à lei),  não éera estatisticamente protagonizado por negros nos Eua.
             É nesse ponto que se assinala a observação de Elias. Estudando o que  chamou a relação estabelecidos-outsiders, acomodou num mesmo feixe "outsider" tanto os judeus na Europa e particularmene Alemanha nazista, quanto "as comunidades negra e hispanófona nos Estados Unidos". Neste texto, integrando o volume "Norbert Elias por ele mesmo", há um momento auto-biográfico, posto que Elias escapou dos nazistas migrando à Inglaterra, mas seus pais, não.
            Já nas suas entrevistas ele havia chamado a atenção para o fato de que na Alemanha, em sua maioria os  judeus, por estarem economicamente prósperos, nunca chegaram a compreender o que era o nazismo, mantendo os ataques sempre na conta de exceções devidas a comportamentos de moleques. Agora ele o acentua, com ressonâncias que nos interessam aqui, notando que seus pais o haviam visitado na Inglaterra e podiam ter escapado aos campos de concentração ficando com ele, mas insistiram no retorno à Alemanha. O argumento do pai é o que chama a atenção: "O que podem me fazer? disse, nunca fiz mal a ninguém, nunca, ao longo de toda minha vida, infringi a menor lei".
         Inversamente, a biografia de Einstein por R. Clarck registra sua troca de cartas com Madame Curie. Ela insistia para que Einstein permanecesse na Alemanha a fim de fortalecer a resistência à contaminação das massas pelo nazismo, mas a essa altura a resposta de Einstein já estava se pautando pelo argumento de que ela só agia assim por desconhecer a realidade no interior da Alemanha - caso contrário, pelo seu apego à vida do amigo insistiria em que ele emigrasse o mais rápido possível.
           Ora, se Elias está metodologicamente instituindo a perspectiva unificante da situação do Outsider como alvo de ações bem descritíveis da parte dos grupos "estabelecidos", na verdade ele não procede assim quanto aos detalhes, posto que demarca uma diferença que considera essencial entre a situação do judeu e a do cigano, como ambos grupos outsiders nos "Estados nacionais da Europa" - onde o caso da Alemanha nazista foi apenas de uma radicalização.
              O traço de inabalável confiança dos judeus seria na verdade peculiar, devido a que se eles não podiam deixar de estar cientes de que lhes era vedado "numerosas promoções e posições sociais, como por exemplo, os meios burgueses e aristocráticos, de professor universitário etc.", como um grupo culturalmente associável ao Livro, haviam se destacado e se sentido à vontade "nos domínios aos quais tinham acesso, ou seja, os da economia e da cultura" e assim "não se comportavam absolutamente, segundo o status inferior que lhes era destinado, como um grupo outsider desprezível".
            O raciocínio é claro: "a imagem do caixeiro-viajante judeu desonesto, cacarejante, sujo e cheirando a alho - imagem que se encontrava constantemente na sociedade alemã cristã - era demasiado distante do que se sabia sobre si mesmo para poder machucar de verdade". E inversamente "Grupos outsiders com uma situação comparável nos estados nacionais da Europa, por exemplo os ciganos, permaneciam sempre inferiores aos grupos estabelecidos, cultural e economicamente sem a menor ambiguidade". Por outro lado, permanacer auto-inferiorizado, por exemplo pelo uso de roupas diferenciantes e claramente estereotipadas ou no caso dos negros, pela pertença a uma classe definida escrava, facilita as coisas de um certo modo, porquanto confirmando as expectativas do "estabelecido" ("established") não provoca sua reação dirigida.
            Talvez pudéssemos, quanto a Coalhouse, dizer que enquanto cristão e culturalmente assimilado ao cristianismo, numa situação como a dos Eua, não Europa, ele podia estar na mesma situação de não interiormente atingido pela imagem tão flagrantemente falsa que o established lhe atribuía. Ou seja, ele apostava, como os judeus, na "civilização" (legalidade moderno-ocidental) acima da "cultura" (valores comunitário-sectários), e a dialética de ação-reação devia ser empurrada para o domínio da progressividade histórica, o que subentende algum modelo trans-histórico de evolução social a partir do fato contemporâneo do Estado de direitos (moderno-ocidental).
             Obter um modelo assim é expressamente o que Norbert Elias disse de si mesmo enquanto sociólogo, em termos da definição do objetivo de sua carreira. Eu confesso,porém, que o início desse seu texto intitulado "Notas sobre os judeus como participantes de uma relação estabelecidos-outsiders", me fez lembrar quase como que algo inevitável, o que Henry Louis Gates havia criticado em Ralhp Ellison, em termos da perspectiva do cânon anti-racista de negritude dos inícios do século XX - mas lembrando que essas reflexões memorialísticas de Elias são dos anos oitenta.
          Ao começar salientando que o que tinha " a dizer sobre os judeus" estava ligado aos seus "anos de aprendizado", de modo que não era uma questão de apenas a experiência própria, ele não deixa de acrescentar que "não posso dizer que os problemas de identidade que decorriam desse duplo pertencimento à tradição alemã e à tradição judaica jamais me tenham preocupado." De fato devia ser  "óbvio" que a pertença identitária estava presente em seus pensamentos desde o início de sua auto-apreensão como pessoa numa sociedade.
             É essa duplicidade que Ellison, segundo Gates, tematizava. Ora, eis o que Ragtime parece estar, do mesmo modo que Gates pretende afirmar para o texto da negritude recente, desconstruindo. Isso porque seria algo dependente da noção de que por trás de tudo, jaz algo real como uma pertença identitária.
              Mas se em Ragtime a fala de Coalhouse como demonstrada construída afinal, a pertença, ocorre de fato, o maior problema que me parece ser colocado pelo texto da negritude implícito no romance é que ao se tornar negro, Coalhouse não se engloba culturalmente negro.
            Pois ele se torna a antítese do líder negro e cânon da negritude, Booker Washington. Decerto essa situação não é nova, e curiosamente Oswald de Andrade a registra - surgiu para mim como algo verdadeiramente notável o quanto podemos aproximar de fato Norbert Elias e Oswald, como espero tornar claro a seguir. Mas dentro dessa semelhança, de modo algum a cisão no interior da cultura produz a ruptura irreversível da sua projeção possível como totalidade.
            Falando sobre Richard Wright, num artigo intitulado Velhos e Novos Livros ("Estética e Política - coleção "obras completas") Oswald registra a experiência que aquele havia narrado após romper com as fileiras do partido comunista. Num dia de protesto negro, estando o grupo filiado ao partido e organizado por este, Wright fora reconhecido como dissidente e assim expulso de entre a multidão compacta em marcha. Agredido e humilhado, tornou-se irreconhecível sua aparência bem vestida, mas então como anônimo, reintegra-se à marcha e não é afastado do meio da multidão.
            Diante de Washington, Coalhouse não constroi, de fato, um discurso de si em que se reconheça cindido ou contraditório com sua identidade. O que me surpreende nessa fala é, pelo contrário, a sua unidade abstrata, no entanto tão sentida com a maior paixão como atômica (indecomponível). Contudo, ela constitui por isso mesmo uma espécie sui generis de contradição performativa.
             O encontro ocorre na casa invadida do milionário Morgan - que numa espécie de humor noir,  nada sofre com isso, pois estava em viagem. Ou seja, após a série de atentados, cada um com várias vítimas, perpetrados pelo bando terrorista de Coalhouse sempre acompanhado de um bilhete exigindo a reposição do carro destruído sob ameça de prosseguir a ação em outros alvos. Esse bilhete passa a ser assinado pelo grupo intitulado "presidência provisória dos Estados Unidos"
            Como nada fora feito, o grupo invade a casa numa ação espetacular que espera não poder ser contornada por qualquer forma, pela sociedade branca, além do cumprimento da exigência. A casa é na verdade não só um tesouro material, mas também cultural. Morgan é um colecionador, sua biblioteca é de valor histórico. Tudo isso pesa cada vez mais nas discussõs dos brancos, em que intervem o pai do personagem-narrador, mas de fato ninguém está interessado no destino de Coalhouse, somente numa solução para fazê-lo sair da casa e acabar com o perigo das suas ações terroristas. O problema é que à exceção do pai do personagem-narrador, é ponto de honra da sociedade branca não cumprir a exigência da devolução do carro em perfeito estado.
               A fala de Coalhouse é solene - como ele mesmo diz ser o seu raciocínio. "É exato que sou músico e homem maduro, mas esperava que isto lhe indicasse o solene raciocínio da minha mente. É que talvez pudéssemos ser assim, ambos os servos da nossa cor, insistindo na nossa masculinidade e no respeito a ela devido". Se o narrador replica que "Wahington ficou tão atordoado com a sugestão, que quase perdeu os sentidos".
       Mas de fato, ao que a sugestão conduziu - porque a missão de Washington era tão somente dissoadir Coalhouse de sua exigência - foi apenas a uma outra fala da negritude, a do próprio Washington, egresso da casa invadida, dirigindo-se aos repórteres, após ter conferenciado com o promotor público : "A biblioteca de mr. Morgan é uma bomba de dinamite pronta a explodir a qualquer momento, disse. Estamos diante de um homem desesperadamente doente".
           Lembrando que Washington não era apenas líder da negritude, mas ponte entre os negros e as autoridades brancas que simpatizaram com sua causa por ser a de um pregador religioso, Coalhouse se revelava o símbolo ideal de tudo o que Washington não era ou não queria ver associado ao negro. Acisão irreversível entre negro e negro, é textualmente construída nessas duas falas.
        Mas o pivô aqui, devemos insistir, não é mais a casa ou o terrorismo, e sim o carro. É irracional a atitude das autoridades e mesmo, do plano narrativo "branco", todo deslocado para as discussõs sobre como se livrar do negro terrorista sem cogitar jamais de lhe restituir com justiça, o que lhe fora lesado nos termos de um prejuízo material.
         Convencer a todos de Coalhouse tornara-se suicida devido à violenta morte da noiva - que fora espancada num comício a que comparecera devido à infeliz ideia de obter auxílio à causa do noivo - foi a estratégia do pai do personagem-narrador para que se mudasse de atitude e se entregasse o carro limpo e consertado. O que significava matar Coalhouse, obviamente, após ter-se entregue, o negro tendo nesse ínterim cogitado nesse recurso a fim de que seu bando pudesse ficar livre. O irmão mais moço do persongem narrador, a essa altura, integrava esse bando - tendo vindo de sua adesão a Goldmann, por desilusão amorosa com a glamour girl Evelyn Nesbitt.
           Tal foi o desenlace trágico. O irmão mais moço fica com o carro, não sem antes ter rompido formalmente com o pai do personagem narrador - a quem se dirigiu como a um burguês típico abusivo dos empregados - e sua fuga o leva, como já assinalei, a selar seu destino como participante da revolução mexicana. Não deixa de lembrar Lawrence, pois sua função invariavelmente é explodir coisas como Lawrence explodia trens. O comércio da família era de fogos de artifício.
           Ora, se o romance deixa o vazio entre negro e negro, onde e como está fixada textualmente a diferença "do" negro?
           Não podemos aqui ignorar que os personagens se movem num contexto histórico preciso, a metade inicial do século XX. Nele, a terminologoia heideggeriana da diferença ontológica recobre uma cena sociologicamente cindida, como reporta Norbert Elias, exemplarmente performatizada a cisão no congresso de sociologia em Zurique (1928), entre Karl Mannheim e Alfred Weber, irmão do mais célebre Mas Weber.
           Elias defende a causa de que Alfred Weber não era apenas a sombra do irmão - que já perdera a essa altura. Mas um pensador honesto e vigoroso, ainda que como o irmão fosse um "ser apaixonado" de modo que nem sempre, estando pessoalmente atingido, conseguia expressar de forma clara o seu pensamento.
          Ao contrário, Mannheim era um homem brilhante cujos dotes de elocução vinham do seu traço pessoal intensamente competitivo, aliás esse tema da competição na constitutividade conceitual de carreira sendo um dos seus desenvolvimentos explícitos. Creio que se pode afirmar que Mannheim não pensava então naquilo que designo "interlocução", mas todo o corte conceitual partindo da unidade da diferença - como causa atributiva ou como efeito articulado - o elide de fato.
             A exposição de Elias constroi com rara clareza não só o embate dos dois homens, Mannhiem e A. Weber, quanto os méritos da polêmica. Mannheim havia começado por uma visão de mundo unívoca, reportável da consciência europeia medieval centrada no equilíbrio católico. A partir daí a modernidade seria a cisão e multiplicação de esferas de ação emancipadas, originando "plataformas intelectuais" que daí passaram a cometir entre si.
         O movimento dessa pluralidade conflitiva não se pode, portanto, conceituar pelo simples exame intelectual, digamos, por sua diferença ou "consciência". Segundo Mannheim, nós só entendemos a cada uma se a ligarmos ao "Ser" ou situação material como a esfera de ação em que se constituem como auto-consciência em competição com as demais.  A polaridade Ser-Consciência não é de fato, ao que me parece, uma duplicidade, mas uma dualidade tal que a segunda é mero epifenômeno da primeira.
         Portanto, na dualidade como na lógica fundamento-suplemento que segundo Derrida define nada menos que toda metafísica ocidental desde Platão como uma paralogia excludente do devir ao conceito inteligível, há uma aparência de multiplicidade quantitativa, mas só há uma realidade pensável por tal existente por si. É óbvio que a metafísica está assim "desconstruída" ao ser definida incontornavelmente como uma posição política, uma valoração de princípio ao mesmo tempo aí e intematizável pelo requisito de Racionalidade, posição estranhamente cita para ser excluída, do suplemento. Posição construída como inteligibilidade que no entanto rege uma economia psíquica, um desejo.
       Em todo caso, na metade inicial do século XX, se Mannheim é o eminente criador da "sociologia do conhecimento", pensando estar superando Marx ao preservar o seu materialismo, contudo, como uma posição do Ser, e não apenas determinada em geral, de modo que não haveria conhecimento (ciência/Saber) descompromissado com o Ser, todo o investimento esgota-se na consciência como aquilo que é assim explicável na sua função de Ser.
           Foi a isso que se designou relativismo radical, o que Mannhein ele mesmo chamava apenas "Seinsbezogenheit", "dependência do pensamento e do saber em relação ao Ser". E também o que despertou a reação apaixonada de A. Weber que já de si nunca totalmente desinteressado, ainda que cortês e sociável, "no presente caso, teve dificuldade para esconder sua irritação", posto que o relativismo radical de Mannheim atingia profundamente o que era o legado do seu irmão Max, ter posto a salvo a autonomia da cultura frente ao reducionismo materialista de Marx.
          Alfred Weber defendeu portanto essa autonomia em sua intervenção neste congresso, contrapondo-se francamente em seu aparte a Mannheim. Segundo Elias, expectador engajado, ele o fez com bastante competência, ainda que não tenha deixado de gaguejar e se repetir umas tantas vezes. Ora, a questão aqui sendo o ideal-típico, não devemos supor que se trata de fato de uma defesa do sujeito como da consciência para-si interagente na cultura. Esta só pode ser descrita na sua autonomia, como ideal, ainda que devamos supor que ela não tem uma causalidade alhures, mas compreendê-la por aquilo que ela é enquanto meio de senetido para-si. Não creio que este não tenha sido o caminho que desde essa confrontação, foi o mais frequentemente escolhido.
          As razões para isso são que para efeitos analíticos, isto é, de formalização de um sistema social como concretamente um conjunto de fatos de sentido desencadeados como realidades constatáveis num campo de amostragem dada e esperada, foi o que Parsons designou ato-unidade a instrumentação mais oportuna.
          Um ato-unidade talvez não tenha consistência psíquica factual - nós fazemos coisas, mas em nossa mente elas estão interligadas umas às outras. Não obstante, o ato-unidade tem uma consistência descritiva formal na medida em que o que a partir dele se objetiva é um outro ato-unidade performatizado por alguma outra pessoa em função do que ele desencadeia interativamente.
           Se o sociólogo ou o antropólogo social, como reportou Emilio Willems, está interessado na observação da rede de interações estáveis dentro de um campo social, numa cidade da atualidade ele vê que um funcionário do correio entrega uma carta, uma dona de casa compra pão, um médico avia uma receita, um padre murmura uma oração, um famacêutico a lê. Em função de que, o destinatário da carte emite um cheque, o balconista embrulha o pão, o paciente toma a receita e se dirige à farmácia, o farmacêutico entrega o remédio mediante pagamento, o fiel se aproxima do altar.
          Para lidar com sociedades em que as pessoas agem de forma que nós não poderíamos entender apenas generalizando o que nós próprios fazemos e sabemos que outros fazem, na nossa sociedade, pareceu ser este o recurso mais aplicável. Contudo, da reconstrução descritiva de inter-ações a partir de atos-unidade à projeção do ideal-tipo como o que está na consciência do executante do ato em termos de significado do que ele mesmo é enquanto atuante, vai uma grande distância, sem hesitar percorrida por uma posição metodológica que deve começar pela ignorância da linguagem. Willems mesmo o confirma ao dizer que a linguagem não é confiável, que uma série de normas pode estar aí prescrita e acalentada apenas para não ser realizada ou para ser burlada.
           Mas de fato, o que está sendo realizado ou burlado não deixa de estar numa conexão com tudo o mais que é dito, e o que o ato-unidade põe pode não ser a inclusão num campo social, mas a exclusão dele.
          Ora, podemos nos perguntar se, uma vez que nem os Weber nem Mannheim estavam preocupados com o sujeito - o qual é sempre sujeito de linguagem - o que é que de fato os torna tão inconciliáveis. O materialismo de Mannheim irrita o culturalista, mas pensando bem, ele não deixa de estar construindo igualmente uma "consciência" a qual tem que ser do mesmo modo entendida.      
         Ocorre que Mannheim avançou para uma polarização das plataformas de pensamento em competição, de forma tal que uma dicotomia de liberal e conservador teria se determinado historicamente como o presente da cultura, mas para Mannheim o liberal é ele mesmo um tipo de conservador na medida em que sua consciência está radicada no ser de instituições concretas tais que a mediação, suporte do jurídico em que repousa o liberalismo, já acarreta uma captura no ser. Não é um requisito da Racionalidade em geral, e supô-lo já é uma deformação da competitividade prescrevendo o que é princípio particular do ser em princípio geral da consciência independente do ser, como se pudesse haver alguma.
             Foi o que irritou sobremaneira a Alfred Weber, e na verdade o que a consciência enquanto europeia dos produtores de cultura tem repugnância em aceitar, argumentando que se é assim, nenhuma ciência pode mais ser dada como tal. Este é um problema que só se tornou mais e mais agudo desde que o funcionalismo - como ficou designada a solução dos Weber generalizada -  foi em grande medida superado na cena intelectual pelo estruturalismo straussiano, lacaniano e de Althusser, mais o seu desdobramento "pós" estrutural, por exemplo em Foucault e Linda Hutcheon, como já vimos.
            Mas o estruturalismo a princípio não era uma posição "relativista", pelo contrário, pretendia cortar as inexatidões ou cumplicidade discursiva do funcionalismo, acentuando a irredutibilidade da diferença apenas para demarcar o que difere como visão trans-histórica afinal consolidada de uma racionalidade-linguagem da ciência ocidental. Em todo caso, o que devemos notar é  que  a deslegitimação de todo sócio-evolucionismo a partir dos anos oitenta até hoje, interfere nesse quadro de modo que atualmente a confusão entre rejeição do formalismo e rejeição do funcionalismo é máxima - porque tende-se a interpretar a rejeição portando sobre apenas um dos lados da disjunção. Inversamente, creio que o pós-modernismo é a superação dela.
          Oswald de Andrade, inversamente ao trend da época, me parece ter ficado mais do lado de Mannheim. No entanto, sua ambição, como explicitamente a de Elias, foi construir uma terceira posição no debate, além do materialismo do "ser" - diremos aqui, da "identidade" -  e do idealismo da "consciência" como "cultura" o que então designaremos "diferença".
            O que une Oswald e Elias, não obstante eles parecerem ter optado por lados antagônicos. O limite, em todo caso, é o sujeito. Elias desenvolveu, além do conflito social subjacente às relações  established-outsider, um teoria da "figuração" - a meu ver uma variante do sistema social parsoniano, na medida em que ambos seriam Gestalten totais do campo social, mas Elias estendendo de forma abrangente a questão da auto-representação da consciência. Aqui não poderíamos incursionar por esse tema, compreensivelmente.
            Textos e registros de Oswald, entre Ponta de Lança, A marcha das Utopias e Os dentes do dragão lembram muito a argumentação de Elias nas partes concludentes do livro citado, em prol de uma crítica e mudança da consciência de si como sujeito individual. Mas todo esse cenário funcionalista me parece ambíguo, porque a partir do momento em que simultaneamente o limite é dado pelo ideal-típico e a consciência, com exclusão da materialidade do Signo, o Si não pode ser deslocado como horizonte da inteligibilidade. Outrossim, é o que está sendo defendido da redução materialista do relativismo radical do Ser.
          Oswald segue explicitamente a Mannheim quando se trata do dualismo de ideologia e utopia - conceitos mannheimnianos, de modo que a utopia é algo mais do que a projeção de um gênero textual idealista a partir do motivo edênico do achamento ultramarino. Trata-se do fundo de sonho espreitando por trás da ideologia e transformando-a em ideal revolucionário. Mas esse ideal é desencadeado pelo limite da exploração material da ideologia. Assim, se houvesse uma posição do Ser tal qual o medievo, a ideologia contentaria a todos e não haveria necessidade de utopia revolucionária.
           Podemos notar, porém, que Oswald em algum ponto torna-se crítico de Mannheim, ali onde ele avança para o inconsciente freudiano, como interlocutor crítico. Esse avanço torna-se importantíssimo no cenário pós-moderno, especialmente brasileiro, como veremos, mas aqui o que devo acentuar inicialmente é que tal cenário internacional me parece só poder ser desencadeado a partir da confrontação do inconsciente freudiano ou em todo caso dos estruturalismos, ao funcionalismo. Mesmo que pudesse parecer um hegemônico retorno ao funcionalismo, como cenário ele é intrinsecamente ligado à questão do Signo.
           Ora, Oswald pôs um problema atualíssimo, o qual porém pode por um lado ser apresentado sem incursionar pelo inconsciente, apenas a partir da torção a que submete a dicotomia de Mannheim entre o ser e a consciência, entre identidade e diferença
           Pois, que é o Ser? A partir do momento em que Oswald denega que a consciência do "homem nu" - o aborígine do matriarcado - pode ser apreendida por qualquer posição de Ser constítuída no campo da intelibilidade social do "homem vestido" (ocidental-patriarcal), ele está instaurando uma problemática não possivelmente coberta pelo debate europeu, onde o Ser sempre será de um modo ou de outro inteligível como sua consciência de Ser.
           Mas como lidar com a consciência de Ser do aborígine, se ele não está nem numa unidade tal que o que resulte seja uma rede de obrigações coercitivas de Si em função do Ser, como no medievo católico, nem numa pluralidade tal que o conflito seja entre unidades do mesmo modo, só que framentadas da unicidade originária?
           O problema aqui é que para construir conceitualmente esse deslocamento, Oswald não tinha os instrumentos que se disponibilizaram depois. Apelou, inversamente - contra o formalismo estruturalista à Strauss, por um lado; mas contra a unidade da consciência de Si generalizável, por outro lado - para a promiscuidade originária da antropologia sócio-evolucionista do século XIX, num parâmetro portanto inaceitável para todo pensamento trans-histórico do século XX, inclusive  do próprio Elias. Utilizou-se de Bachofen para conceituar o matriarcado, etc.
            Quando se tratou, porém, de sua crítica a Freud, ele disse o mesmo que Elias quando na entrevista a van Voss e van Stolk, fez notar que o inconsciente freudiano tinha que ser suplementado a partir do fato de que o superego do pai individualizado é irrealizável em algumas sociedades não-ocidentais. Oswald partiu dessa evidência, anos antes, e teria se beneficiado mais se em vez de usar o termo promiscuidade, houvesse falado em poliandria. E sobretudo se em vez de um corte no tempo, houvesse tratado do corte espacial, refenciando pesquisas mais atuais. Ele não deixou de fazê-lo, mas sob uma moldura de que poderia ter se descartado.
          Em todo caso, e se é complicado depurar Oswald de suas múltiplas abordagens de um tema de certo modo avant la lettre, mas notando-se que seu texto teórico não era produzido a partir de um assunto, a estudar e aprofundar, metodologicamente integrado, mas como interlocução contínua de uma importação cultural extremamente variada e continuamente renovada, creio que podemos afirmar algo um tanto afastado da leitura de Benedito Nunes a propósito.
           Este partiu do que seria a centralidade do que Oswald designou sentimento órfico - o fundo pulsional-animal do homem - para chegar ao que seria a visão de mundo antropofágica em termos, segundo Nunes, "do Raubentier nietzschiano, o homem como animal de presa que, segundo a imagem digestiva empregada por Nietzsche em A genealogia da moral, assimila e digere, sem resquícios de ressentimento ou de consciência culposa e espúria, os conflitos interiores e as resistências do mundo exterior".
            A princípio, podemos notar que a leitura de Nietzsche por Oswald foi marcada pela preocupação em desfazer o mal-entendido de algum Nietzsche nazista.
            Ora, precisaríamos, para encetar a filsofia bárbara que Oswald preconizava, transformar o sentimento órfico a partir do fato de que ele não se constroi discursivamente numa oposição à consciência cristã disponibilizada. Oswald está pensando num fundo livre do estar no mundo, a princípio desprovido de algo que pudéssemos, nós civilizados, acrescentar enquanto Ser. Não sabemos o que é o Ser fora da materialidade do Ser, mas esta se encontra como que entre parêntesis pelo fato do homem ser o homem nu, não o vestido.
            Esse princípio é pois, um sentimento cósmico, de indiscernibilidade homem-natureza, o que de forma discursivamente deslocada, Oswald vai depois referir como domínio total do homem sobre a natureza, quando se tratar de fazer desse estado primitivo a realidade retomada pelo homem originário a partir do que lhe permitirá a técnica - o capitalismo reinterpretado à luz da "revolução dos gerentes".
             Claro está que o sentimento órfico não é pulsional sem ser o que está impulsionando nada menos que toda representação ideológica - mesmo a cristã alienadora de si, repressora do que materialmente a transporta desde um fundo de emotividade. Portanto, a distorção da verdadeira causa a partir dessa censura ou repressão é o que Oswald está contrapondo a Freud ser criadora da cultura contraposta à natureza.
                  É por isso que lhe pareceu, a meu ver, não restar outra saída se não usar a antropologia positivista, porquanto ela não lidava com outra coisa além das técnicas, isto é, capacidade de intervenção prática. Cingindo a cultura como essa capacidade, Oswald parece ter pensado poder cortar as consequências ocidentais racistas do progresso, por que primeiro, o aborígine podia ser dispensado da téenica, sem prejuízo do atributo de sua inteligência, porquanto havia sido brindado com a possibilidade do ócio a partir do seu entorno natural, e segundo, o que a técnica resultava era na condição aborígine desse ócio como o supremo valor conservativo e evolutivo da humanidade que assim, inversamente ao que supunha Freud, voltava ao originário da consciência, ser sem distorção censória ou repressão do sentimento órfico-orgiástico, etc.
               Creio que se pode então dizer que Oswald estava interessado num inconsciente de alteridade que ainda que provado pelo rito antropofágico - não o canibalismo por necessidade ou ferocidade - o que resultava era no Homem Cordial, o homem gentil e capaz de se importar com os outros assim como se fosse consigo mesmo, traço que ele salienta ao tratar desse assunto em "Um aspecto antropofágico da cultura brasileira: o homem cordial" ("Do pau-brasil à antropofagia e às utopias"). Designação de cordialidade, portanto, sem a ambiguidade do sentimentalóide incoativo à inteligência que se plasmou como herança genética do brasileiro a partir de suas raízes não nórdicas, naqueles outros contextos da sociologia modernista do Brasil.
            Oswald fala aí ora da extrema gentileza do selvagem das eras do rito antropófago, ora de sua riqueza emotiva, ora, ao longo de sua obra, trata Oswald da convergência sempre reiterada desse homem capaz do que "pode-se chamar de alteridade" como "sentimento do outro, isto é, de ver-se o outro em si, de constatar-se em si o desastre, a mortificação ou a alegria do outro".
            Então Oswald está colocando um problema materialista do Ser, porquanto a dicotomia do Ser- Consciência não recobre, pelo lado do Ser, algo determinável pelo conceito ocidental, mas a questão é - que é que ele recobre? Como podemos apreender a alteridade desde o que implica um inconsciente do superego grupal?
          O problema é que poderíamos ligar Oswald a um reducionismo estereotípico que elide a consciência de si mesmo no selvagem - o que faria o mérito da crítica do Lacan pré-straussiano ao matriarcado, lembrando que Oswald, quanto a Strauss, pensa que ele não cobriu todo o horizonte aborígine, mas só estudou formas já patriarcalizadas de comunidades humanas.
          Mas se ele pensa que o Ser material do homem tecnizado, como terceiro tempo transistórico hegeliano-dialético, após o homem natural e sua antítese, o homem civilizado-tecnicizado, teria forçosamente que resultar num homem natural tecnizado, liberado pelo ócio da censura-repressão do desejo cuja impulsão haveria de ter sido apenas a necessidade de compelir ao trabalho nas regiões não naturalmente dotadas da exuberância natural nativa, não poderia estar preconizando uma ausência total de consciência de si. E isso ainda que, do mesmo modo que Norbert Elias, estivesse se tratando da crítica à consciência individual deterministicamente conceituada como burguesa, efeito histórico do capitalismo ante-gerencial.
           Portanto, Oswald estava supondo um inconsciente de alteridade revolucionário do seu efeito como consciência, e vamos constatar que na atualidade o problema de conceituar o que é que podemos concretamente discernir sob esse título é o que veio agudamente à interrogação.
           Nos anos noventa, aproximou-se a Deleuze essa postulação de Oswald, sabendo-se que em Deleuze-Guattari a alteridade no inconsciente não-freudiano implica em vez do sujeito, a heceidade - não supomos que somos o ego transcendental, mas uma contínua mudança em prol do que pensamos em termos de conjunção infita do que a metafísica designava antes "acidentes" ou atributos transitórios de nós mesmos, contrapostos à essência universal.
          Mas vemos que há uma grande desvantagem nessa colocação. Atualmente quando se trata de contrapor, por exemplo, adesão à resistência à dominação imperialista do Oriente Médio, a reação nos propõe um argumento deleuziano tal que deveríamos escolher entre o que queremos "ser" quando aderimos a uma causa: a repressividade religiosa ortodoxa, ou a suposta liberdade democrática... Além disso, há uma totalização epistemológica no tornar-se infinitivo. Tornar-se negro, tornar-se mulher.... mas que é negro, que é mulher? Antepor que se trata de estar subtraindo a heceidade à história, que se está criando o negro e a mulher ao tornar-se isso ou aquilo, a meu ver escamoteia o fato de que não é assim que iremos lidar com os problemas históricos reis dos negros e das mulheres, com os quais não temos que escolher tratar a partir de uma escolha que vai ter seu ponto de incidência em nós mesmos enquanto pessoas, ser, etc.
            Aderimos à causa anti-imperialista no Oriente Médio sabendo que sua questão religiosa é intrínseca à sua cultura e problemática histórica, mas sua posição de alvo do poder imperialista afeta a todos nós enquanto potendiais alvos desse mesmo poder. Nós não temos que nos tornar algo para entender a alteridade de relações em que esse algo está problematicamente historicizado. A meu ver a contraposição de devir e história está tão inviabilizada quanto tratar o gênero de forma a priori determinada nas suas relações com o sexo - como se nada no feminino, por um modo ou por outro que se o aborde, como universal ou não universal, em todo caso nada tivesse a ver com a biologia humana.
          Não sabemos em que  está, a priori, mas sabemos que nenhum paradigma vai escapar das desvantagens de qualquer a priori ulterior ao modo como construímos nossa posição na linguagem em relação ao que visamos.
           Luis Carlos de Morais Junior ("O olho do cíclope"), tratando a obra de Oswald, propôs dois conceitos dela hauríveis e aplicáveis a regiões de problematização atual. Solicitei a ele mesmo que escrevesse o que seria mais oportuno colocar aqui sucintamente, a título de inserção temática.
            O conceito de excência atende ao requisito da indagação que acima designei, a propósito da consciência-efeito do inconsciente de alteridade. E o de cinematótica conecta a obra de Oswald a parâmetros de questionamentos da estética contemporânea, lembrando que como "prosa cinematográfica" a obra de Oswald tem sido  considerada nas letras nacionais.
         
"A excência substitui a tradicional essência revertendo suas características clássicas de transcendência, identidade e interioridade. Excência é um tipo de “essência” puramente externa, imanente e diferencial, que não está na interioridade do sujeito, da consciência ou da substância, e sim no puro fora das forças livres - está -não em outro mundo, ou na mente - e sim no próprio princípio material das coisas, na imanência, na física; é sempre diferencial - águas do rio - fogo eterno e vivente. A excência é uma máquina artificializadora na obra de Oswald de Andrade".
             " A cinematótica é a capacidade transcendental do ser humano de processar o complexo de informações captadas pelos sentidos de duas formas possíveis: como imagem-ação como forma estatal modelizada, vinculada aos interesses práticos e funcionais. Ou como imaginação que é  a visão cristalina da realidade como algo luminoso e criativo. Essas formas de ver e sentir geral duas formas de cinema, mas elas já existem na própria percepção humana e podem nortear artes e modos de vida".

          Aqui é importante notar que se vários conceitos formativos das noções propostas de excência e cinematótica são de fato reportáveis da obra de Deleuze, não obstante há incursões ulteriores que permitem repor na pós-modernidade, essa performance de leitura de Oswal de Andrade.
            Regristro com esse intuito, uma conversa minha com Luis Carlos, em que ele conta a participação no seu programa universitário radiofônico, "No tempo do rádio à lenha" (faculdades CCAA), de um grupo de estudantes também radialistas. O programa desse grupo é restrito ao piadístico, e por isso foi colocada a questão de como se obteria uma participação interessante a um programa cultural.
           A estratégia de Luis, conforme ele me disse, consistiu em colocar ao grupo a questão de sua informação estética - que programas conheciam, de que programas, mudando que aspectos e acrescentando que tantos outros, haviam haurido seus projetos de apresentação. O resultado foi uma interessante tematização cultural de programas radiofônicos constantes na cena brasileira recente, enveredando pela informação histórica do rádio.
             A historicização do objeto, a pluralidade indeslocável da temática, se torna o aspecto pelo qual a multiplicidade perspectívistica se reinterpreta na ausência de um "tempo puro" como "ideia" bergsoniana. Não obstante, essas são questõe complicadas da atualidade, as quais aqui podemos apenas colocar algo de sua tematização recente.
              É desse modo que podemos inserir a recolocação do cãnon por Henry Louis Gates , Jr. ("A escuridão do escuro: uma crítica do signo e o macado Significador", em Pós-modernismo e política, org. por Heloisa Buarque de Hollanda), quando assinalou que na atualidade, a negritude estaria recusando lidar consigo mesma na base de uma identidade como diferença unívoca, dualmente oposta ao ser ou situação do ser. Aqui, portanto, ressalto que não me parece que qualquer terminologia da duplicidade - como a que ele cita de Ellison - possa ser interpretada sem um questionamento de sua oposição a dualismo. O duplo da literatura romântica precisamente não é um dualismo,  mas ele percorre como influência uma ampla gama de investimentos estéticos ao longo do século XIX não-realista, e o caso de Ellison teria que ser revisto.
           Não obstante, creio que a colocação de Gates sobre o modo como o cânon da negritude está sendo ressituado, permanece importante.
            É ao textualizar a negritude como canon - linguagem por um lado dispersa em textos, por outro lado reunida em acervo - que um novo texto se produz na imanência desse cânon da negritude. mas esse novo texto pode ser desconstrutivo do seu cânon, tanto quanto restar construído nele e por ele, ao ser um diálogo crítico com ele.
           É interessante o fato de podermos reencontrar essa inserção que considero historiográfica do pensamento,  num horizonte antigo do helenismo, o Hipothiposes de Sexto Empírico. Ali ele referencia a filosofia de Heráclito como o que deve examinar a ver se converge ou não com a escola cética. Ora, previamente Enesidemos, um filósofo dessa escola, afirmou a sua pertença convergente à filosofia de Heráclito. Sexto não concorda com essa afirmação, mas está ciente de que sendo assim, ele como pertencente à escola cética tanto quanto Enesidemos,  não pode dar como saber seu alguma decisão sobre se Heráclito é ou não o corolário da filosofia cética. E com efeito, Bréhier, historiador da filosofia, considera esse problema insolúvel.
          Aparentemente, o problema da decalagem entre identidade e diferença resta inteiro, mesmo que o revival psicanalítico e o funcionalista nesse ínterim tenha suscitado um novo meio de reduzir a segunda à primeira, com prejuízo do acesso aos meios verdadeiramente emergentes de um cenário conceituável em termos de pós-modernismo.
          O vocabulário do Ex-cêntrico não mais podendo cingir-se à memória ou discurso, já na imanência do texto, não nos fornece umconceito único, mas instaura o campo do pensável dessa quetão descartadas as formas deterministas ou reducionistas de contorná-la.
            Mas quanto a Ragtime, vemos que se não há uma fixação da diferença, é porque ela percorre a textualidade ao construir sua fragmentação em vez de sua totalidade ou para si. Nessa fragmentação da consciência de si como da cultura ou diferença, Coalhouse se anula ao heroicizar-se, mas não está assegurado seu heroísmo na canonicidade histórica protagonizada por Booker Washington. Ora, o que foi construído como textualidade?
           O movimento centrífugo da diferença, por onde se anula o fragmentário no mesmo percursa que o determina enquanto tal, é impulsionado textualmente por um movimento contrário, centrípeto, o da família. Esse movimento centrípeto impede a meu ver que se leia Ragtime como prosa de fragmento ou texto fragmentário, ainda que se o tenha feito frequentemente, como registrado em Hutcheon.
            Ao contrário de uma cisão construída como o movimento intrínseco à textualidade como na trajetória de Coalhouse, é interessante notar que a crítica da consciência que poderíamos interpretar constante a partir do reducionismo goldmanniano do local ao universal - “Não existe o camponês mexicano, não existe o ditador Diaz. Existe apenas uma luta no mundo inteiro, somente a chama da liberdade, tentando iluminar as medonhas trevas da vida neste mundo” - não reconstitui porém uma série de encaixes tais que a cisão se perpetue.

           Assim como Jorge d'Alvelos de Oswald de Andrade, o “irmão mais moço de mamãe” compensa a frustração amorosa de suas relações impedidas com a pin up – portanto, com o símbolo sexual – engajando-se na Revolução descontextualizante de pátria e referenciais culturais. As proveniências nacionais mais diversas são em Os condenados de Oswald reduzidas por uma só condição de “sofrimento”. A ação terrorista do negro Coalhouse ou as fileiras amotinadas no México são um mesmo campo sem diferença para a colaboração do “irmão mais moço” enquanto revolucionário, em Ragtime.

            Mas nos dois romances, a pin up como símbolo sexual é de caracterização ambígua. Em OA, Alma é obviamente prostituída, mas por sua devoção amorosa ao gigolô. Por proveniência, ela é uma moça de família. Doctorow se refere a Evelyn como a uma mulher na verdade casada. A estória comparte seu envolvimento com Stanley e depois com o milionário Harry, que mata aquele por ciúmes dela, mas não se esclarece de fato os sentimentos dela.      

              Evelyn aceita o casamento com Harry, ainda que pudesse amparar-se com Stanley. O marido preso, ela se envolve depois com o artista Tateh, com quem não rompe voluntariamente. Suas relações com o irmão mais moço, depois desse rompimento forçado e sofrido, não são de fato meramente interesseiras. Ela usa a fortuna oriunda do seu casamento para contribuir à causa filantrópica e anarquista, recusando-se a aproveitar-se comercialmente de sua fama de beleza. Não obstante, o narrador a partir daí a referencia invariável e textualmente como "prostituta". Harry é absolvido, no fechamento do romance, mas ela apenas permanece no anonimato, envelhecendo, não torna à condição de mulher do milionário.

          Ora, a ambiguidade é construída a partir da própria Goldmann. O rompimento com Tateh, separado da primeira esposa, com quem Evelyn havia se envolvido mais por amor caritativo à criança que era a filha deste, de modo que Evelyn pudesse atuar como mãe e dona de casa, seu maior desejo, se deveu a que, indo com ele a uma exibição de Goldmann, fora por esta fustigada a partir do discurso da líder contra a exploração da beleza feminina, ou seja, contra a prostituição, e consequentemente Tateh passou a vê-la como prostituta, afastando-se dela. Goldmann a doutrina e a politiza, mas desde então é o personagem-narrador que não mais descarta o atributo de "prostituta" à personagem Evelyn Nesbitt.
            Se notarmos bem, vemos que a única personagem de mãe fica sendo a assim designada a partir da centralidade do narrador, sem nome, apenas sempre referenciada como "mamãe".
           A revista anarquista é intitulada Mother Earth, mas de fato, é da universalidade revolucionária de que se trata, assim como Goldmann não é mãe. A jovem mãe do filho de Coalhouse havia sido brutalmente eliminada, desencadeando a ação terrorista anti-racista deste. O filho de Coalhouse se torna incorporado à família do narrador cuja “mamãe” o havia desejado como seu bebê desde o início. A filha de Tateh também se incorpora como filha de “mamãe”, pois ele casa com “mamãe” após o narrador perder o pai, não havendo mais tampouco, a mãe biológica da menina.
           Aqui é interessante que o narrador perde o pai, mas não constroi literariamente essa perda. Ele como que incorpora Tateh como pai a partir do fato de que ele é agora o marido de "mamãe" e de que as duas famílias, a de Tateh e a dele mesmo, haviam se reunido. De fato, o narrador deixa de ser o filho do fabricante de fogos - metáfora da pirotecnia formalista? - para se tornar o enteado do "artista", o desenhista ilustrador de livros.
             Entre OA e Doctorow, respectivamente o romance escrito em princípios de século XX e o romance escrito sobre os princípios do século XX, a Revolução mudou de sentido. De sua universalidade não se faz mais o seu elogio, quando se trata do contexto recente. A trajetória do escritor Oswald é aliás importante quanto a isso, ilustrando o conflito cultural que essa universalidade precipitara nesse ínterim.
             Quanto a Ragtime, é interessante que o movimento centrípeto da maternidade possa ser colocado em contraste total à visão da América como colcha de retalhos. E de fato, a princípio o narrador havia constatado que se Freud não havia gostado da América, quando a visitara, para ele "América" era um erro, e acrescenta o narrador que muitos concordariam com Freud. Mas a partir daí, trata o texto apenas de mostrar os sofrimentos e conflitos sociais que grassavam no país de inícios do século como pólo atrativo da imigração ou terra das liberdades e da promissão.
           Qual seria o erro de fato - senão o de pensar como Freud,  que a América é um lugar essencialmente diferente dos outros? Ora, Freud e os outros pensavam - para o bem ou para o mal - a América como o intotalizável, o sem universal, o fragmentário. Mas qual seria o erro segundo o que podemos haurir do texto, senão o de pretender totalizar essa diferença americana, de pensar por exemplo que a "mamãe" única da visão totalizante universal da época reconstituída não estava na América presente, como se pudera ter sido esta apenas a correspondência do seu estereótipo de fragmento e democracia?
             Nossa época está assoberbada das visões dicotômicas de anjos e demônios discursivizadas a partir dos aparatos midiáticos de proliferação do established, cujo enraizamento talvez não seja o de uma pluralidade de competição na base da identidade, mas uma profunda unidade oriunda da reserva do saber-poder que institui a linha Norte e Sul da exploração capitalista como assimetria internacional. Os fantasmas dos totalitarismos e autoritarismos instalam-se no horizonte do neoliberalismo econômico, impedindo que se tenha hoje - ao contrário do discurso dessa economia - um mercado pensável fora de uma dominação política.
             A meu ver, se as questões apenas se tornam assim mais complexas, não é simplesmente rejeitando a existência do pós-modernismo como horizonte crítico e temático historicamente situado, cuja enunciação não está separada das circunstâncias políticas da exclusão social de que se trata em nome da "tecnologia" - a exclusão da liberdade de consciência, a exclusão dos direitos da pessoa privada - que se vai restaurar alguma forma de resistência aplicável.
         Nós nos encontramos na ulterioridade de contextos sócio-políticos, econômicos e epistemológicos que puderam trafegar nos parâmetros de limite críticos que já não são os nossos. Não será útil manter-se na ignorância dessa realidade.
        Acima registrei minha intenção de colocar também neste blog aportes considerados oportunos quanto à transformação epistemológica pertinente em várias frentes das ciências humanas. Percebi, contudo, que este espaço está apresentando problemas - até de visualização, como se pode constatar. Espero vir a possibilitar-se tratar desses temas num espaço blogger especialmente destinado.
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